ERA UMA VEZ NA AMÉRICA LATINA #31
A Dupla Jornada: um clássico do cinema feminista latino / A Filha do Pescador nos cinemas/ As Outras e O Nosso Tempo no streaming/ Festival Filmes Incríveis no REAG Belas Artes
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A DUPLA JORNADA: as mulheres trabalhadoras da América Latina
Entre saídas de fábricas na Argentina e no México e comunidades que se organizaram em função do trabalho das minas na Bolívia e na Venezuela, a documentarista brasileira Helena Solberg registra em “A Dupla Jornada”, um filme de pouco menos de uma hora, as várias nuances da superexploração a que foram submetidas as mulheres latino-americanas durante os anos 1970.
Liderando uma equipe quase inteiramente formada por mulheres, Solberg, uma das criadoras do coletivo International’s Womens Film Project, recolhe testemunhos e imagens de trabalhadoras que se desdobram em infindáveis jornadas de subemprego, trabalho doméstico e trabalho de cuidado. Mulheres mal remuneradas e mal tratadas quando conseguem trabalhar fora e nunca remuneradas ou reconhecidas por seu trabalho compulsório enquanto donas de casa.
“Para o sistema, o trabalho produtivo da mulher é secundário porque a função a ela destinada é a reprodução da mão de obra. Desde a concepção de um ser humano até apresentá-lo nas portas das fábricas, foi a mãe que o alimentou, vestiu e preparou para a função de trabalhador. O dono da empresa paga um salário e se beneficia do trabalho de duas pessoas”, explica a narração do filme a certa altura.
Dos relatos, desabafos, reivindicações e debates de suas entrevistadas, tratadas por todos a seu redor como cidadãs de segunda categoria, Solberg traça um panorama bastante completo e atento acerca das condições do trabalho feminino no período - condições que ecoam até os dias de hoje.
Simples, sensível e ao mesmo tempo robusto, o filme, marcado pela oralidade de mulheres exaustas, se volta ao cotidiano dessas personagens, politizando suas relações de trabalho, suas dinâmicas familiares. Nesse entremeio, questões como violência doméstica, baixa estima, sonhos (ou a impossibilidade deles) e maternidade também vêm à tona.
Uma obra substancial para a compreensão da divisão sexual do trabalho por estas bandas. Um clássico impreterível no quesito cinema, gênero, classe, trabalho e América Latina.
Disponível em serviços de aluguel (como Looke e Vivo Play)
NOS CINEMAS
A FILHA DO PESCADOR
Fruto de uma coprodução entre Brasil, Colômbia, Porto Rico e República Dominicana, “A Filha do Pescador” marca a estreia na direção de longas-metragens do diretor colombiano Edgar De Luque Jácome.
Na trama, Samuel (Roamir Pineda) mora sozinho e amargurado numa ilha isolada do Caribe colombiano. Exímio mergulhador, o homem vive da quase extinta prática da pesca submarina de garoupas em mergulho livre. Um dia, o filho Samuelito, que ele não via há 15 anos, bate à sua porta. Agora uma mulher trans, conhecida como Priscila (Nathalia Rincón) e em fuga, ela é forçada a voltar ao lar para se esconder. Seus mundos não poderiam ser mais distantes. Samuel não consegue aceitar Priscila, e ela não consegue perdoá-lo por eventos do passado. Isolados na ilha e confrontados por suas diferenças, pai e filha vão precisar buscar nos afetos do passado a compreensão para o presente.
“É uma história muito emocionante e madura, de um jovem realizador que dialoga com amplas plateias porque trata de algo absolutamente universal, que é a relação entre pais e filhos. Além disso, o filme é resultado de um esforço conjunto de quatro países, um exemplo da importância das linhas de coprodução internacional do Fundo Setorial, que resultou num processo muito enriquecedor de troca de experiências”, afirmou o produtor brasileiro Rodrigo Letier no material divulgado à imprensa.
Estreia prevista para 18 de julho.
CASA IZABEL
Chegou aos cinemas sob pouquíssimo alarde o novo filme de Gil Baroni e Luiz Bertazzo, diretor e roteirista que chamaram atenção em 2019 com “Alice Júnior”, um longa “sessão da tarde” que acompanha a mudança de círculo social de uma adolescente trans que por causa do emprego do pai deixa o nordeste para viver no interior da região sul.
Dessa vez afastados da descontração do universo “Alice Júnior”, Baroni e Bertazzo desenvolvem uma atmosfera que mantém a temática LGBTQIA+, embora privilegie a decadência do conservadorismo brasileiro. Cria-se assim um universo de suspense dramático envolvendo um casarão isolado, herança de uma elite escravocrata, que durante a década de 1970, em plena ditadura civil-militar, é transformado num retiro para crossdressers. Ali, homens de meia-idade, chefes de família, cansados de seus casamentos e do envelhecer, procurando distrações das “tensões provocadas pelos comunistas”, pagam caro para por alguns dias poderem tirar férias vestidos de mulheres, performando realidades alternativas.
Em “Casa Izabel”, as dinâmicas do casarão tomam o protagonismo e os personagens de Luís Melo e Jorge Neto se destacam como antagonistas: o velho e o novo, a decadência e a ascensão, o conformismo e a ruptura. Enquanto isso, o espectador observa quase que como um intruso o declínio de dinâmicas inflexíveis e tediosas, muito mais arraigadas no status quo do que na transgressão.
Estreou em 27 de junho.
A FLOR DO BURITI
Borrando os limites entre passados e presente, “A Flor do Buriti” (“Crowrã”, no original) de Renée Nader Messora e João Salaviza (mesmos diretores de “Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos”, 2019), atravessa os últimos 80 anos do povo Krahô, do nordeste do Tocantins, passando, de forma não linear, por alguns momentos decisivos de sua trajetória de resistência: o massacre perpetrado por fazendeiros da região em 1940, a ditadura civil-militar e o governo Bolsonaro.
Vencedor do prêmio coletivo para melhor elenco na mostra Un Certain Regard do Festival de Cannes deste ano, o longa se desenvolve como um híbrido de documentário e ficção a partir da ciclicidade da vida dos Krahô enquanto comunidade originária, de seus desafios, de sua permanência, da defesa dos territórios, da cosmogonia e da memória preservada via oralidade através das gerações.
“A gente não trabalha com o roteiro fechado. A questão da terra é a espinha dorsal do filme. Propusemos aos nossos amigos na aldeia trabalharmos a partir desse eixo, imaginar um filme que pudesse viajar pelos tempos, pela memória, pelos mitos, mas que ao mesmo tempo fosse uma construção em aberto que faríamos enquanto fossemos filmando. A narrativa foi sendo construída com a Patpro, o Hyjnõ e o Ihjãc, que assinam o roteiro”, explica João Salaviza no material divulgado à imprensa.
Estreou em 4 de julho.
NO STREAMING
Netflix
DIÁLOGOS COM RUTH DE SOUZA
No documentário “Diálogos com Ruth de Souza” a cineasta Juliana Vicente (“Racionais: Das Ruas de São Paulo pro Mundo”) registra, ao longo de 10 anos, seus encontros e conversas com Ruth Pinto de Souza (1921-2019), uma das mais importantes atrizes brasileiras, a primeira atriz negra a se apresentar no Theatro Municipal do Rio de Janeiro e a primeira brasileira a ser indicada a um prêmio internacional de cinema, no Festival de Veneza de 1954 por seu trabalho em “Sinhá Moça”, de Tom Payne.
Juntas elas revisitam memórias e arquivos de Ruth sobre sua carreira, vida pessoal e sobre as questões raciais que atravessaram suas experiências ao longo dos anos. Uma homenagem que entre registros e cenas de dramatização respeita o vai e vem das recordações e os limites do querer compartilhar de uma mulher que dedicou mais de 70 anos à dramaturgia, tornando-se referência para artistas do teatro, do cinema e da TV.
Filme vencedor do prêmio de Melhor Direção de Documentário do Festival do Rio 2022.
MUBI
AS OUTRAS
Gabi (Alicia Luz Rodríguez) e Rafa (Nicole Sazo Cariola) são duas jovens universitárias melhores amigas que levam uma vida despreocupada entre aulas, festas e o mundinho cor-de-rosa kitsch que criaram no apartamento que dividem em Santiago. Mas essa rotina relaxada sofre um grande abalo quando Rafa descobre estar grávida e decide abortar. Como no Brasil, o Chile só permite abortos em casos de risco à vida da mãe, inviabilidade do feto e estupro. Correndo contra o tempo, então, as jovens procuram por soluções para que Rafa consiga abortar clandestinamente em segurança.
Em “As Outras” (“Las Demás”, no original), uma comédia dramática colorida sobre amizade e direitos reprodutivos, o conflito explorado pela diretora e roteirista Alexandra Hyland gira em torno de duas jovens mulheres dando um jeito de conseguir comprar comprimidos que representam alívio.
Nesse recorte específico não há conflito moral, religioso. Rafa deseja apenas abortar e seguir vivendo sua vida como sempre viveu. Um filme de estreia vigoroso, conduzido com inesperada leveza, no qual Hyland defende a pressão da clandestinidade, o medo de morrer ou de ser presa, como maior causa de sofrimento num processo de aborto.
O NOSSO TEMPO
Em seu quinto longa-metragem, o diretor mexicano Carlos Reygadas escreve, dirige e protagoniza um épico existencialista sobre a crise matrimonial de um casal que vive um relacionamento aberto.
Na trama, Juan (Reygadas) é um poeta reconhecido que prefere viver isolado em seu rancho no interior com a esposa e os filhos, dividindo o tempo entre a escrita e a criação de touros de lide, touros bravos usados em competições e espetáculos. Ele mantém um relacionamento de mais de 15 anos com a esposa, Ester (Natalia López Gallardo, esposa de Reygadas), a responsável pela administração do rancho. De comum acordo, ambos podem ter relações sexuais com outras pessoas. Quando Ester começa a se apaixonar por outro homem, porém, as contradições do marido “cabeça aberta” vêm à tona.
Com quase três horas de duração, “O Nosso Tempo” (“Nuestro Tiempo”, no original) descasca algumas tantas camadas de comunicação, acordos e intimidades de um casamento cujo núcleo se revela já há muito tempo afetado pelas configurações da misoginia.
Usando como pano de fundo o universo do campo mexicano da criação de touros fortes e competitivos, Reygadas esquadrinha a anatomia das arapucas de controle armadas por egos masculinos, arapucas que vitimam tanto Ester quanto o próprio Juan.
NOTÍCIAS
FESTIVAL FILMES INCRÍVEIS
Um dos cinemas de rua mais tradicionais de São Paulo, o REAG Belas Artes, está prestes a estrear seu próprio festival de cinema no calendário da cidade. Entre os dias 1 e 14 de agosto acontece a primeira edição do Festival Filmes Incríveis, que exibirá 20 filmes recentes e inéditos no circuito brasileiro, cada um de um país diferente.
Dezessete longas já estão confirmados na programação - quinze filmes de quinze países diferentes mais dois longas convidados como exibições especiais, sendo eles “Motel Destino”, do brasileiro Karim Aïnouz, previsto para estrear em circuito comercial no dia 22 de agosto, e “Spokój/The Calm”, do polonês Krzysztof Kieslowski, originalmente lançado em 1976, mas ainda inédito no Brasil. “Motel Destino”, único filme brasileiro na competição oficial do Festival de Cannes deste ano, será o longa de encerramento do festival em 14 de agosto.
Da América Latina estão confirmados “Memorias de un Cuerpo que Arde”, da costarriquenha Antonella Sudasassi, vencedor do Prêmio do Público na mostra Panorama do Festival de Berlim 2024; e “Reinas”, da peruana Klaudia Reynicke, vencedor do Grande Prêmio do Júri Internacional de Melhor Filme na Mostra Generation Kplus, também em Berlim 2024.
Durante a coletiva de imprensa de lançamento do FFI, André Sturm, diretor do Belas Artes Grupo, ressaltou que a intenção do festival é proporcionar uma imersão cinéfila ao público, uma experiência de volta ao mundo cinematográfica com obras que dificilmente estreiam nas salas de cinema. Com ingressos a preços acessíveis (R$ 5,00, a meia-entrada/ R$ 10,00, a inteira) e uma seleção pequena de títulos, Sturm espera que o espectador confie na curadoria do evento para assistir ao máximo de filmes possível, permitindo-se sequer se preocupar em ler sinopses para escolher o que ver. Por isso, sessões surpresa também estão previstas na programação.
Cada filme terá três sessões durante o festival, que acontece apenas no formato presencial. No final, o público irá escolher seu filme favorito por meio de uma votação.
Contato e PIX: eraumavez.americalatina@gmail.com
Incrível! Parabéns pelo trabalho impecável!