ERA UMA VEZ NA AMÉRICA LATINA
A imagem em movimento desembarca na América Latina pela porta da frente, já como uma importação estrangeira dos endinheirados da época. Data de julho de 1896 a primeira sessão pública (e comprovada) do cinematógrafo dos irmãos Lumiére a ocorrer em terras latinas, mais precisamente, no Rio de Janeiro.
Por estas bandas, o aparato francês levou vantagem em relação às criações patenteadas pelo norte-americano Thomas Edison por ser ao mesmo tempo câmera e projetor. Tal simplicidade explica a rapidez com a qual se começa a filmar na região, embora a difusão do “fazer cinema” tenha sido, desde o início, desigual (do ponto de vista geográfico e, claro, de classe).
Foto: “Limite”, de Mário Peixoto (1931)
Ainda no período mudo, a Revolução Mexicana (1910-1924) desponta como primeiro grande marco a estimular a produção de um cinema latino político, voltado às questões coletivas de seu tempo. Também aí a censura aos registros visuais começa a se estruturar. Paralelamente, a Primeira Guerra Mundial (1914-1918) abala o mercado europeu, que até então fornecia fitas aos cinematógrafos que circulavam pela América Latina. Nesse cenário, o mercado estadunidense ganha espaço, começa a se concentrar em Hollywood, a exportar fitas para o mundo e a estabelecer a ficção como padrão predominante.
O cinema rapidamente se transforma em negócio. Assim, torna-se mais vantajoso comprar e exibir filmes prontos dos estúdios que começavam a despontar como potências de produção nos EUA do que bancar a realização de obras nacionais de nível semelhante. Em 1924, 83% dos filmes projetados no Brasil já eram estadunidenses. As condições de filmagem deste lado do continente seguiram sendo artesanais e resistindo aos trancos e barrancos às tentativas de controle. Mesmo o documentário, principal gênero filmado pelos pioneiros locais do cinematógrafo, acabou institucionalizado nos cinejornais, numa tentativa de capturar o formato e podá-lo no quesito inventividade.
Na transição do mudo para o sonoro, outro golpe. O cinema latino-americano, desde cedo acostumado a transpor obstáculos e se adaptar por entre as brechas das estruturas de poder, alcançava a maturidade com títulos como “Limite”, de Mário Peixoto (Brasil, 1931). Acabou atropelado em sua melhor fase. A chegada do sonoro representou uma revolução tecnológica importante, mas também uma nova corrida pelo controle dos mercados. Nessa corrida, outra vez a América Latina ficou para trás.
O mundo superava a barreira da língua, aceitando a dublagem e as legendas em prol do encantamento proporcionado pelo star-system hollywoodiano. Por trás da mágica da massificação da sétima arte, porém, a reinvenção de uma poderosa indústria passava a impor formas e conteúdos à criação audiovisual. Novamente, a hegemonia do cinema-negócio configurava os dilemas que as cinematografias dependentes enfrentariam.
Ser América Latina
É feita de crises cíclicas a história do cinema latino-americano. Sua estreia como uma importação classista, somada ao espectador relegado à função de consumidor, determinou várias das dinâmicas que se reproduzem até hoje.
De lá pra cá, claro, muita coisa aconteceu. Argentina, Brasil e México se tornaram cinematografias centrais na região. Entre 1950 e 1960, surge a televisão e seus cacoetes. O Novo Cinema Latino-americano, que despontou na década de 1960, se relacionou diretamente com a efervescência política do período, operou como frente de resistência, denúncia e busca por identidade e significou um novo amadurecimento da cultura cinematográfica. Naquele momento, aliás, o cineasta brasileiro Glauber Rocha chegou a escrever que “nosso cinema é novo porque o homem latino-americano é novo, a problemática é nova e nossa luz é nova, por isso nossos filmes são diferentes”.
“Nosso cinema é testemunha de uma memória que não podemos abandonar”. Apresentação de Maria Gadú e Tulipa Ruiz na cerimônia dos Prêmios Fénix de cinema ibero-americano, em 2018.
Depois, políticas públicas de fomento à produção e à circulação de filmes nacionais existiram e foram desmontadas inúmeras vezes. Desde o fim dos anos 1990, o Programa Ibermedia incentiva coproduções entre a comunidade ibero-americana. Mais recentemente, a chegada dos gigantes de streaming expandiu o número de produções audiovisuais locais, embora, no fim do dia, elas ainda pertençam a empresas estrangeiras.
A influência da indústria hollywoodiana nunca deixou de pairar sobre nossos ombros, determinando hábitos de consumo e viciando nossos imaginários. E embora dificuldades tecnológicas tenham sido de certa forma superadas com o passar do tempo, produção, distribuição, divulgação e censura (em suas mais diversas manifestações) ainda nos são questões caras.
Quem consegue produzir narrativas audiovisuais na América Latina? Por quais espaços esses trabalhos circulam? O que contam nossos filmes e nossas séries? Por que pouco sabemos sobre eles? Como as realizações autorais sobrevivem nas bordas das disputas de mercado?
Era Uma Vez na América Latina nasce como um convite à reflexão sobre as contradições e a magia do audiovisual latino-americano. Como um esforço para que (re)encontremos o resto do continente através do que temos de mais precioso: a diversidade de nossas histórias. Histórias que resgatam memórias coletivas, registram o presente e vão muito além do narcotráfico, do futebol e do melodrama - apesar de um bom melodrama ser sempre bem-vindo.
Trabalhamos com a ideia de cinemas latino-americanos porque não possuímos uma única indústria. Sequer alguma indústria. Possuímos, na verdade, cinemas plurais, que transitam entre o comercial e o independente, envolvidos pela realidade de cada país e conectados pelos horrores e pelas maravilhas do ser latino-americano.
Esta é, portanto, uma newsletter interessada em, através do audiovisual latino contemporâneo, que se destaca cada vez mais nas principais premiações ao redor do mundo e que é motivo de orgulho, exercitar o sentir-se pertencente. Abramos, então, o leque de possibilidades de entretenimento e interpretações da realidade. Olhemos ao nosso redor.
(Referência Bibliográfica: PARANAGUÁ, Paulo. Cinema na América Latina: Longe de Deus e perto de Hollywood. L&PM, 1985.)
8 DE MARÇO - PARA CONHECER AS MULHERES DO CINEMA LATINO-AMERICANO
Para começar as indicações, e aproveitando o mês de março, organizei uma lista com alguns filmes latino-americanos protagonizados e/ou dirigidos por mulheres. Um filme por país. Todos disponíveis em plataformas digitais de locação ou assinatura.
Argentina: XXY (Lucia Puenzo, 2008)
Roteirizado e dirigido por Lucia Puenzo, XXY tem como protagonista uma garota intersexual, Alex (Inés Efron). A adolescente de 15 anos vive com os pais numa pequena vila litorânea no Uruguai. Eles a superprotegem, por medo dos preconceitos que possam atravessar seu caminho, mas Alex está crescendo e tem suas próprias questões para encarar.
Disponível na Netflix
Bolívia: Cocaine Prison (Violeta Ayala, 2017)
De dentro de uma prisão na Bolívia, Violeta Ayala observa como são afetados os soldados rasos do tráfico de drogas. Eles mesmos registram o cotidiano atrás das grades e, a partir desse material, a diretora explora questões como o encarceramento em massa, problemática comum a toda a América Latina.
Disponível no Prime Vídeo
Brasil: Los Silencios (Beatriz Seigner, 2018)
Esse é o típico filme brasileiro que passa despercebido pelos grandes circuitos de exibição. Ambientado na fronteira entre Colômbia e Brasil, Los Silencios trata dos fantasmas latino-americanos. Das vítimas dos conflitos armados, dos deslocamentos forçados, da falta de perspectiva. Uma obra surpreendente e fantasticamente realista.
Disponível para aluguel no MUBI, Looke e Google Play
Chile: Uma Mulher Fantástica (Sebastián Lelio, 2017)
Vencedor do Oscar 2018 de Melhor Filme Internacional, o chileno Uma Mulher Fantástica apresentou para o mundo o talento da atriz Daniela Vega e se tornou o primeiro longa protagonizado por uma pessoa transexual a levar um Oscar. No longa, Vega interpreta Marina, uma mulher trans que perde o companheiro e, enquanto vivencia o luto, precisa enfrentar os preconceitos da família do falecido. Sensível, o longa sem dúvidas representa um marco do cinema latino-americano.
Disponível no Prime Video
Colômbia: Pássaros de Verão (Ciro Guerra e Cristina Gallego, 2018)
Ambientado durante as décadas de 1960 e 1970 e baseado em fatos reais, Pássaros de Verão ficcionaliza, de forma épica, o que pode ser considerado como início do narcotráfico colombiano. No centro da trama está uma família da comunidade indígena Wayuu, que gradativamente abandona trabalho e valores associados à terra, à coletividade e à ancestralidade para se envolver com a produção e exportação de maconha.
Disponível no Prime Video
Costa Rica: O Despertar das Formigas (Antonella Sudasassi, 2019)
Isabel (Daniela Valenciano) é costureira e vive com a família em um pequeno povoado da Costa Rica. Já com duas filhas, ela reluta em aceitar a ideia do marido de engravidar outra vez para tentar ter um menino. Seu maior desejo é trabalhar tranquilamente e viver sem apertos financeiros. Tal decisão, porém, a fará ser questionada em seu papel de mãe, mulher e esposa. Começa aí uma revolução íntima e silenciosa.
Disponível no Google Play
Equador: Alba (Ana Cristina Barragán, 2016)
Alba (Macarena Arias) tem 11 anos. Quando sua mãe é internada, ela passa a viver com o pai que mal conhecia. A relação conflituosa com esse pai, as meninas do colégio e o primeiro beijo são estímulos que marcam sua entrada na adolescência.
Disponível no acervo do MUBI
México: A Camareira (Lila Avilés, 2018)
Todos os dias são mais ou menos iguais para Eve (Gabriela Cartol). Aos 24 anos e mãe solo, ela encara extensas jornadas de trabalho num luxuoso hotel da Cidade do México para enviar dinheiro ao filho. Reservada e resiliente, a jovem tem como principal ambição tornar-se encarregada do andar 42, a cobertura. Maternidade e classe são pontos centrais da trama.
Disponível no catálogo da Supo Mungam Plus
Paraguai: As Herdeiras (Marcelo Martinessi, 2018)
Estrelado por Ana Brun e Margarita Irún, As Herdeiras narra a história de duas mulheres da elite paraguaia que vivem de heranças. Quando o dinheiro acaba, uma vai presa por dívidas enormes e a outra começa a prestar serviços de motorista para um grupo de senhoras ricas. A partir daí, uma relação sentimental de longa data acaba abalada pelas ironias do destino.
Disponível no Google Play
Peru: Como Superar um Fora (Bruno Ascenzo e Joanna Lombardi, 2018)
Quantas vezes você cogitou assistir a uma comédia romântica peruana? Com história e formato bastante convencionais, Como Superar um Fora ganha o espectador por seu carisma. Contemporâneo, bem-humorado e atencioso com as questões de sua protagonista, o longa comprova que cinema latino-americano de qualidade não se resume a dramas pesados.
Disponível na Netflix
Uruguai: Anina (Alfredo Soderguit, 2013)
Única animação desta lista, Anina conta as aventuras de Anina Yatay Salas, uma garotinha que sofre bullying na escola por seu nome completo poder ser lido também de trás para frente.
Disponível gratuitamente na Spcine Play
Venezuela: Pelo Malo (Mariana Rondón, 2013)
Junior é um garoto de nove anos que tem o cabelo crespo. Seu maior desejo é alisar os fios para tirar a foto da formatura da escola imitando um cantor famoso de cabelos longos e ficar bonito para a mãe, que o rejeita cada vez. Pobreza, maternidade, homossexualidade e racismo são elementos-chave da trama.
Disponível para assinantes Prime Video e para locação no Google Play e Looke
Socorro, minha lista de filmes para assistir duplicou com essa newsletter 😱
Amei a contextualização, amei as indicações!