ERA UMA VEZ NA AMÉRICA LATINA #10
ENTREVISTA: Marina Rodrigues, produtora executiva focada em políticas públicas no audiovisual, fala sobre os problemas de distribuição e exibição enfrentados por filmes latino-americanos.
O lançamento do longa-metragem brasileiro Medida Provisória, dirigido por Lázaro Ramos, reacendeu mais uma vez o debate sobre as dificuldades que atravancam a circulação dos filmes nacionais pelas salas de cinema do país.
Em entrevista ao site Omelete, Lázaro Ramos declarou: “Tínhamos a perspectiva de ter 80 salas. Quando a gente começou a pedir pro público marcar as salas falando ‘eu quero ver Medida Provisória’, subiu para 188. Na primeira semana o filme fez 100 mil espectadores, na segunda os donos de sala subiram para 330 salas e o filme chegou a 285 mil espectadores. Ontem subiu mais cinco salas.”
Com tais números, Medida Provisória vai se tornando um marco do cinema brasileiro na retomada pós-pandemia. Um feito expressivo, mas que segue aquém da quantidade obscena de salas que são ocupadas de uma só vez quando uma nova produção hollywoodiana é lançada por aqui - Morbius, por exemplo, foi lançado mais ou menos na mesma época, em quase 2 mil salas.
Entra ano, sai ano e um dos principais problemas do cinema latino-americano segue sendo o fato dele não ser visto. Então, para destrinchar um pouco o tema da circulação de filmes latinos pelo Brasil e pelo continente, entrevistei Marina Rodrigues. Marina é produtora executiva focada em políticas públicas no audiovisual e escreve para os sites Cinema em Cena, Cinem(ação), Cineplot e Simplificando Cinema.
Marina, você poderia explicar como funciona o processo de distribuição de um filme? Que fatores costumam influenciar na quantidade de salas e horários que um filme ocupa nos circuitos de exibição?
Depende muito do país que está à frente disso. No Brasil, quando você realiza um filme através de um edital do FSA (Fundo Setorial do Audiovisual), precisa escolher a destinação para a sala de cinema logo no momento do preenchimento da inscrição, além de já contar com uma distribuidora. Esse é um processo bastante burocrático e que acaba afastando os filmes mais independentes de conseguirem grandes lançamentos, uma vez que parte da verba precisa ser destinada para a parceria da distribuidora e o cinema precisa comprar o filme para exibir.
Geralmente, o que influencia o número de salas é a sua capacidade de retorno de bilheteria, porque, para o exibidor, vale colocar em evidência aqueles filmes que irão vender mais na bomboniere dele, pois é um lucro que fica para ele em 100%. Outra maneira de distribuir um filme é fazer uma carreira por festivais nacionais e internacionais. Normalmente, nossos filmes mais independentes acabam traçando esse caminho, uma vez que assim é mais fácil encontrar distribuidores internacionalmente para lançar o filme e isso acaba influenciando também no interesse brasileiro em exibi-lo.
Que tipo de dificuldades um filme latino-americano encontra para ser distribuído em seu próprio país e também nos países vizinhos?
Falta de apoio público centrado para a parte de distribuição e barreira linguística. Embora a América Latina de modo geral consuma filmes dos vizinhos, se formos pensar nas salas de cinema, é difícil conseguir ver tantos filmes latino-americanos nelas, em grande parte pela rejeição ao espanhol e o mesmo acontece com o Brasil pelo português. A quebra dessa dificuldade começou quando os órgãos que fomentam a atividade passaram a incentivar editais de coprodução internacional, o que permite um lançamento mais sólido do filme também no país parceiro e ajuda a sua campanha internacional.
O que é a cota de tela? Qual a importância dela hoje para a distribuição de filmes? Muitos países no mundo adotam leis de cota de tela? Por que ela não está aplicada no Brasil?
A cota de tela é uma medida de proteção ao mercado interno de cinema. Ela tem como objetivo incentivar a população a buscar assistir ao filme nacional, deixando-o mais acessível em salas mais comerciais (como as de shopping, por exemplo). Ela é um mecanismo que existe pelo menos desde o fim da Primeira Guerra Mundial e foi idealizada primeiramente pela Europa, que naquela época já queria deter o avanço do domínio das narrativas norte-americanas no início de Hollywood. Ela continua existindo nos principais países que compõem o que podemos chamar de "nata cinematográfica", que são os mercados dos EUA, França, Alemanha, Itália, Coreia do Sul, China, Índia, e muitos outros que têm emergido nos últimos anos graças a visibilidade da cota de tela.
A cota também não é algo que existe sozinha, para ela funcionar devidamente, precisa contar com um grande incentivo por trás, ou seja, os países também se dedicam a lançar editais de produção para que esses filmes no futuro possam ocupar essas salas. A continuidade e o alargamento dela são importantes mecanismos para que ela consiga cumprir seu papel. Pode não parecer, mas o público de filmes brasileiros cresceu bastante desde o lançamento da Ancine (Agência Nacional do Cinema) em 2001. Ainda não é perfeito, mas se teve avanços.
Atualmente, a cota de tela para as salas de cinema não está funcionando no Brasil porque o prazo de validade da atual venceu em setembro do ano passado, quando a Ancine fez 20 anos. Cabe ao Congresso levar sua renovação em sessão plenária para a aprovação, mas a movimentação está bem parada no momento.
Algum país latino-americano já adota medidas que favoreçam a distribuição/exibição de seus filmes?
Podemos citar alguns esforços centrados na promoção dos filmes em alguns países, como México, Argentina, Chile, Uruguai e Colômbia. No caso da Argentina, a manutenção de salas públicas de cinema, idealizadas pelo órgão regulador da atividade (INCAA), ajudou a fomentar o interesse da população pelo cinema nacional, principalmente pelo baixo valor dos ingressos. Outros vizinhos têm políticas mais amadurecidas de distribuição, como editais que contam com bastante verba e a idealização de suas Film Commissions, algo que ajuda a visibilidade do país internacionalmente, como recentemente foi o caso do Uruguai que se tornou parceiro da França devido a boa relação dentro da Marché du Filme de Cannes.
Provavelmente há muita gente que pensa que só não são exibidos mais filmes brasileiros e latinos em nossos cinemas porque não existe interesse do público nesse tipo de produção. Como se forma um público?
O interesse se forma a partir do momento em que você tem possibilidades de acessar aquele tipo de cinema. Com o relacionamento predatório com que os Estados Unidos age nos mercados estrangeiros para promover seus filmes, acabamos tendo as salas comerciais tomadas por filmes de um único país, como vem ocorrendo mais recentemente com a onda de lançamentos de franquias de super-heróis. Por isso, é importante realizar a manutenção da cota de tela para que esses filmes latinos e brasileiros não fiquem escondidos na grade de horário dos cinemas ou nem cheguem a ser lançados em um circuito comercial, ficando dependentes da visibilidade do streaming ou da necessidade de realizar um aluguel digital.
Também muito se fala sobre as salas serem tomadas massivamente por enormes produções estadunidenses porque é o que movimenta bilheteria e dinheiro. O que seria necessário para enfim alcançar a diversidade de programação nas salas de cinema? Como essa diversificação poderia ser financeiramente viável/vantajosa?
É preciso que se aplique medidas de incentivo ao cinema nacional mais duras, como é o caso da cota de tela. Antes de vencer, nossa cota era de apenas 53 dias (quantidade mínima de dias ao ano que cada sala deve exibir títulos brasileiros), número bastante inferior de países que, no mesmo período de vigência da nossa Lei do Audiovisual, conseguiram construir indústrias mais fortes através de cotas de telas bem altas, como a Coreia do Sul que passou os quase últimos 30 anos cobrando mais de 100 dias.
Também é preciso haver fiscalização dos filmes, pois se depender do dono da sala de cinema, os filmes estarão cumprindo com a cota, mas não em horários bons para serem consumidos por grande parte da população.
A partir desse movimento, é possível incentivar uma educação audiovisual de valorização do cinema, tendo mais condições financeiras em investir em cinemas populares, como já ocorre com o circuito SPCine.
Com a consolidação das grandes plataformas de streaming como exibidoras, muitas obras que antes não conseguiam espaço nos cinemas e não passavam nem perto das programações da TV aberta agora finalmente chegam ao público. Assim, criou-se a impressão de que essas plataformas seriam, em alguma medida, democratizadoras de conteúdos e acesso. Isso é uma falsa impressão? Qual a sua opinião sobre a quantidade, a qualidade e o tipo de obras latinas disponibilizadas nos streamings?
Totalmente falsa impressão, principalmente porque quem hoje tem visibilidade no streaming é a mesma pessoa que já tinha visibilidade nas salas de cinema e na TV a cabo, nada mudou. A quantidade de obras disponibilizadas é muito inferior à capacidade que o país tem em produzir. Hoje nós temos um mercado na TV a cabo que ocupa mais de 40% do espaço com um cota de tela de apenas 3h30 de programação (semanal). Isso é bastante revelador, principalmente porque a legislação da TV a cabo cumpre 10 anos este ano.
O streaming não tem interesse algum em produzir em massa em nosso país sem que exista uma regulação por trás. O Brasil é um país que, antes do desmonte, produzia quase 200 filmes por ano, é o segundo maior mercado da região latina e está empobrecendo seus trabalhadores pela relação predatória das plataformas.
Quais são os prós e os contras das plataformas de streaming? Qual a importância de haver regulamentação também nesses serviços e o que ela mudaria no cenário atual?
De certa maneira, ter sido um mercado que não parou durante a pandemia, ajudou muitos profissionais brasileiros a não perderem seu emprego, o problema é que o efeito não é o mesmo que de anos anteriores, uma vez que as plataformas não absorvem toda a indústria porque não existe condições financeiras para isso sem o apoio público. Outra vantagem é que as obras brasileiras passaram a ser conhecidas por outras pessoas, em especial públicos mais jovens e que conseguem entender melhor a necessidade e a importância das políticas.
Com a regulação, seria estabelecido uma política de cota de tela, o que obrigaria as empresas a dar bem mais visibilidade ao produto brasileiro no catálogo. Teríamos a mesma facilidade de encontrar obras brasileiras lá como temos com obras espanholas e francesas, por exemplo. Além disso, a regulação traz também a necessidade da partilha de direitos patrimoniais e autorais daquela obra, o que garante que o dono(a) da obra continue recebendo por ela através das receitas comerciais que o projeto vai gerar e também pode ter capacidade de negociar a exibição em outras plataformas ou ainda em canais de TV, um relacionamento que também beneficia economicamente o streaming.
Por fim, para você, como funcionaria uma dinâmica ideal de circulação de filmes latino-americanos pelo continente?
O meu cenário ideal é utópico, mas, para a América do Sul, deveria haver uma consolidação disso através do Mercosul, se tornar uma política do bloco econômico assim como é realizado pela União Europeia. Lógico que não temos cacife para isso, mas pensando somente no Brasil e no mercado gigante que ele absorve há 20 anos, é importante incentivar o retorno da Ancine e a capacidade da agência voltar a divulgar editais de coprodução entre países latinos, além do retorno efetivo do Brasil no edital Ibermedia, o mais importante para os países ibero-americanos conseguirem conquistar boa distribuição pelo continente.
PARA ASSISTIR EM CASA
Érase Una Vez… Pero Ya No (Netflix)
Depois de reinventar o dramalhão mexicano em La Casa de las Flores e de se aventurar por um suspense familiar de época com Alguien Tiene que Morir, o mexicano Manolo Caro lança a série original Netflix “Érase Una Vez…Pero Ya No”, um conto de fadas musical definitivamente não recomendado para crianças.
Na trama, uma princesa (Mónica Maranillo) e um pescador (Sebastian Yatra) apaixonados são separados tragicamente. Mas um feitiço lançado pela bruxa (Daniela Vega) do povoado garante que eles irão se reencontrar em outra vida - caso isso não aconteça, todo o povoado estará condenado a nunca mais amar.
Muitos séculos depois, o povoado vive do turismo que se movimenta ao redor da tal lenda da princesa e do pescador. Alguns locais esperam ansiosos para que o casal apaixonado finalmente se encontre e termine com o feitiço, enquanto outros enxergam no término da história um destino perigoso para os negócios.
Com seu habitual humor escrachado e seu tino sempre certeiro nas escolhas de trilha sonora, Manolo Caro se alicerça no popular, no brega e no vulgar para satirizar performances sociais. Assim nasce a história de um príncipe de cropped, uma princesa ambientalista lacradora e um castelo medieval decorado com leds coloridos.
Tempestad (MUBI)
Foi com Tempestad que Tatiana Huezo, diretora de Noche de Fuego, representou o México no Oscar pela primeira vez, em 2018 .
Finalmente disponibilizado no Brasil, o documentário acompanha duas mulheres vítimas da violência e da impunidade no México. Miriam, presa injustamente por tráfico de pessoas, e Adela, que busca por sua filha desaparecida há anos.
A Última Floresta (Netflix)
Diante do horror da notícia de que a comunidade Aracaçá, na terra indígena Yanomami, em Roraima, foi encontrada queimada e vazia depois de denunciar o estupro sofrido por uma menina ianomâmi de 12 anos, minha terceira recomendação do mês não poderia ser outra senão A Última Floresta.
Lançado em 2021, o filme, que é dirigido por Luiz Bolognesi e roteirizado em parceria com o xamã e líder político Yanomami Davi Kopenawa, aborda os desafios enfrentadas por esse povo que vive vulnerável às doenças, às violências e às destruições de território provocadas pela exploração garimpeira.
Ai que preguiça desse Medida Provisória. O povo tá fazendo fanfic com a vida real. Ridículo!