Tem sido difícil escrever sobre filmes e séries num país que acaba todos os dias. O mundo mudou no início de 2020. A pandemia revelou fissuras que há muito ameaçavam colapsar. E mais do que isso: revelou insustentável nosso modo de vida. Hoje, contabilizamos aproximadamente 1.5 milhão de mortos pela Covid-19 na América Latina. Só no Brasil são quase 600 mil as vidas ceifadas, vítimas da política de morte executada por um governo golpista e facínora.
Houve a demora na compra da vacina, a delirante e criminosa propaganda de tratamento precoce e a negação da ciência em favor da picaretagem, a volta estarrecedora da fome, a literal falta de oxigênio, o aumento das estatísticas de violência doméstica, a crise na educação pública, a boiada passando, a mata queimando, os povos originários perseguidos.
De repente, a morte virou a ordem do dia. Todos perdemos algo ou alguém. No melhor dos cenários, perdemos abraços e perspectivas. Existir, especialmente sendo brasileiro, tornou-se um eterno definhar. Um estado febril. Estamos presos num pesadelo sádico.
(Reprodução: TV Globo)
Com tudo desabando ao redor, como encontrar sentido em seguir se preocupando com filmes, séries e televisão? Bem, talvez seja a hora de, uma vez mais, recordar a produção audiovisual como importante campo a ser disputado em nossas permanentes quedas de braço.
Não por acaso, o cinema brasileiro aparece como outra entre tantas grandes vítimas do combo pandemia e governo Bolsonaro. O desmonte planejado da Ancine e suas políticas de investimento e valorização das produções nacionais já minava suficientemente o setor, dificultando de todas as formas o fazer cinema no Brasil. Então veio o coronavírus, salas de exibição baixaram as portas, gravações foram interrompidas, lançamentos foram adiados por tempo indeterminado ou remanejados para as plataformas de streaming, com seus algoritmos arbitrários.
Em pouco tempo o streaming se consolidou como a mais prática das opções, tanto para o público, impedido de frequentar as salas pela necessidade do distanciamento social, como para as distribuidoras, que precisavam fazer circular suas produções. O problema é que a falta de regulamentação dessas plataformas de vídeo sob demanda (VOD, na sigla em inglês) não garante que amanhã ou depois continue havendo algum espaço (e justo espaço) nos catálogos para o diverso conteúdo nacional independente.
Tampouco a gradual reabertura das salas parece reconfortante. Sem a manutenção da chamada “Cota de Tela”, que define uma porcentagem mínima obrigatória de ocupação da programação das empresas exibidoras por longas-metragens brasileiros, a tendência é de que as sessões dos próximos meses sejam quase totalmente tomadas pelas grandes produções hollywoodianas, sob a justificativa leviana de atrair de volta o público a esses espaços.
Como se a conjuntura já não fosse bastante complicada, no dia 29 de julho de 2021 um incêndio atingiu um dos galpões da Cinemateca Brasileira na Vila Leopoldina, zona oeste de São Paulo, causando estrago inestimável no acervo e nos lembrando de que no Brasil de Bolsonaro sequer nos resta o direito ao registro e à memória. Foi uma tragédia premeditada, como quase todas as outras, e por isso aquelas chamas do galpão deixado para queimar converteram-se em desoladora representação imagética dos ataques contra nossos olhares e identidades.
É cada dia mais difícil e incerto realizar, distribuir e assistir a produções brasileiras no país. Logo, também é cada dia mais imprescindível estar atento e celebrar obras que conseguem sair à luz do dia, mesmo em meio aos escombros. Esse é o sentido de seguir comentando séries e filmes: não aceitar perder ainda mais perspectivas.
PARA ASSISTIR EM CASA
Para te ajudar a encontrar produções latino-americanas de destaque espalhadas pelos labirintos dos vastos catálogos dos serviços de streaming, começamos nesta edição de “Era Uma Vez na América Latina” a seção de dicas de filmes e séries “Para assistir em casa”. Acompanhe:
Machuca
Clássico do cinema chileno, Machuca gira em torno da amizade entre dois garotos, companheiros de colégio, que pertencem a realidades completamente diferentes, num Chile recém tomado pelo autoritarismo. Gonzalo Infante é filho de uma família de classe média alta que se envolve ativamente nos processos políticos que culminaram no golpe de 11 de setembro de 1973, enquanto Pedro Machuca é filho de uma família pobre, que vive numa comunidade diretamente afetada pela truculência da ascensão do fascismo.
Dirigido por Andrés Wood e disponível na Netflix
La Quietud
Lançado diretamente em streaming, o mais recente filme do diretor argentino Pablo Trapero, La Quietud, uma espécie de novela erótica, narra o reencontro de duas irmãs (interpretadas por Berenice Bejo e Martina Gusmán) que depois de passarem cerca de 15 anos afastadas precisam revirar rancores e segredos de família. Como pano de fundo, as verdades incômodas da época da ditadura.
Disponível no Prime Video
O Despertar das Formigas
Indicado ao Goya 2020 de Melhor Filme Ibero-Americano, vencedor do Festival de Gramado 2019 na mesma categoria e representante da Costa Rica no Oscar 2020, O Despertar das Formigas, primeiro longa-metragem da cineasta Antonella Sudasassi, aborda as micro-opressões cotidianas que sofrem as mulheres, colocando foco sobre a revolução interna de sua protagonista.
No filme, Isabel (Daniela Valenciano) é uma boa mãe e uma boa esposa; um exemplo de bom comportamento feminino. Seu único defeito, de acordo com a família, é ainda não ter dado um filho homem ao marido Alcides (Leynar Gómez).
O problema é que Isa, costureira e já mãe de duas filhas, não quer mais engravidar e passar por apertos financeiros - mesmo sem poder dizer isso abertamente
Disponível no Google Play. Crítica do filme aqui
A Casa das Flores
Para quem busca descontração, a Netflix lançou A Casa das Flores - O Filme, continuação da terceira temporada da série homônima, criada pelo mexicano Manolo Caro. Ótima pedida para aqueles que já acompanhavam a saga da ácida e melodramática família De La Mora.
Disponível na Netflix. Crítica do filme aqui
La Jauría
No formato, uma série policial feita nos moldes da maioria das produções do gênero. No conteúdo, um Chile em convulsão. Com roteiro final e direção geral da argentina Lucia Puenzo, La Jauría (“A matilha”, em português) condensa via ficção a atualidade dos conflitos entre o levante feminista que nos últimos anos se espalhou pelo continente contra a violência de gênero e a ordem conservadora latino-americana.
O desaparecimento da estudante Blanca Ibarra (Antonia Giesen), líder de um coletivo feminista organizado por alunas de uma escola católica de elite contra os abusos de um professor, serve de estopim da narrativa.
Disponível no Prime Video. Crítica da série aqui
Manhãs de Setembro
Marcando a estreia da cantora e compositora Liniker como atriz, Manhãs de Setembro conta a história de Cassandra, uma mulher trans que durante o dia trabalha como motogirl pelas ruas de São Paulo e à noite cantando em um bar, fazendo covers de sua musa inspiradora Vanusa.
Quando a vida da protagonista parecia encaminhada, porém, uma ex-namorada (Karine Teles) aparece para contar que anos antes elas tiveram um filho juntas.
Disponível no Prime Video.
Todo va a estar bien
Julia (Lucía Uribe) e Ruy (Flavio Medina) consideram acabado seu casamento, mas continuam vivendo sob o mesmo teto pelo bem-estar da filha, a pequena Andrea (Isabella Vázquez). Esse relacionamento desgastado, e até então acomodado nas rotinas do dia a dia, incapaz de confrontar suas crises, serve de ponto de partida para Todo va a estar bien (Tudo vai ficar bem, em português), a série mexicana criada por Diego Luna que encontra na tragicomédia a sua forma de discutir ideais de família.
Disponível na Netflix. Crítica da série aqui