ERA UMA VEZ NA AMÉRICA LATINA #6
ENTREVISTA: o diretor Déo Cardoso fala sobre "Cabeça de Nêgo", um dos principais lançamentos do cinema brasileiro em 2021.
Saulo é um garoto negro da periferia de Fortaleza, aluno de uma escola pública. Após sofrer um ataque racista de um colega em sala de aula e ser repreendido pelo professor e pela direção por reagir, o jovem decide manifestar sua revolta ocupando a escola, inspirado pelo que aprendeu sobre os Panteras Negras num livro.
A princípio, a manifestação do protagonista de Cabeça de Nêgo é um tanto solitária, e se relaciona diretamente com seu processo individual de aprendizagem sobre como manejar experiências pessoais, teoria e prática. Mas, ao usar o celular para postar sobre os ratos que infestam a cozinha da escola, os materiais didáticos que nunca deixaram o almoxarifado e os vazamentos nos banheiros, Saulo consegue acessar também a indignação dos colegas.
Depois das postagens na internet, mais e mais alunos se reúnem do lado de fora dos portões da escola para apoiar a iniciativa do estudante. O episódio de racismo, então, transforma-se no estopim que faz transbordar todas as insatisfações dos jovens sobre aquele espaço, dando um pontapé num movimento que cresce em repercussão, reivindicações e significados.
É assim, a partir do que há de mais legítimo, transformador e desafiador na revolta, que Déo Cardoso realiza um filme que fala sobre potências e repressões. Um filme que se dirige especialmente à juventude, mas que é competente em se comunicar com variados tipos de público. Uma obra que procura compreender como a sociedade se relaciona com a escola e denunciar as fissuras de um sistema educacional público precarizado, que mantêm relações íntimas com a burocracia e o autoritarismo.
Estreando na direção de um longa-metragem de ficção, Cardoso conta uma história de perspectivas, com diferentes rostos, interesses e motivações. Uma história que, mesmo enraizada no duro realismo do país, faz questão de preservar sua faísca de utopia. Em tempos de mal-estar generalizado e estrangulamento do cinema nacional, Cabeça de Nêgo ressoa propositivo dentro e fora da trama, tocando em afetos e inquietações que estão à flor da pele para todos nós (ou deveriam estar).
O filme, destaque entre os lançamentos brasileiros de 2021, está disponível no Globoplay, A seguir, a entrevista com o diretor:
Déo, Cabeça de Nêgo é seu primeiro longa-metragem de ficção. Para o espectador que pode eventualmente esbarrar no filme ali no catálogo do Globoplay, você poderia contar quem é o cineasta Déo Cardoso? Que tipo de cinema te interessa? O que te atrai no fazer cinema?
Déo Cardoso é um artista humanista, ativista, e que acredita na justiça social como o melhor e único caminho para atingirmos um grau pleno de civilidade e bem-estar geral. É também uma pessoa apaixonada por artes, e por cinema em especial. Me interesso por vários aspectos do cinema, do realista ao fantástico. Mas minha predileção é por filmes realistas que mesclam força e poesia. Entendo o cinema também como uma forte ferramenta artística de transformação pessoal e social. O que mais me atrai na arte de fazer cinema é a possibilidade de criar mundos, transformar o que é aparentemente banal em algo a ser visto com outras perspectivas.
Por que a vontade de contar uma história sobre o sistema educacional público?
Porque é algo que me inquieta. O sistema educacional público deve ser um dos setores de maior investimento de qualquer país que vislumbre justiça social e econômica. É preciso investir no corpo de alunos/alunas, na docência, na formação para o primeiro emprego, no combate ao racismo e a todo tipo de intolerância. Quando isso não acontece, é preciso buscarmos essa conscientização que parece óbvia, mas que infelizmente normalizamos ao equiparar o público e o privado.
O Saulo, protagonista do filme, é um jovem que depois de ter contato com a história dos Panteras Negras se sente estimulado à transformação. Ao mesmo tempo, você dedica o filme a Adélia Sampaio e Zózimo Bulbul, nomes importantíssimos do cinema nacional que provavelmente são desconhecidos pela maioria dos brasileiros. O que te motivou a invocar essas grandes referências num filme protagonizado pela juventude e que fala com a juventude?
É uma forma de pedir a bênção à ancestralidade, aos que abriram várias portas antes de mim e de tantos e tantas realizadoras negras que hoje fazem filmes sobre essas temáticas. Independente do assunto ou do tema tratado, só pelo fato de sermos negros/negras fazendo um filme hoje - algo que segue sendo raro, infelizmente - precisamos reconhecer quem abriu as portas lá atrás para que chegássemos aqui.
Ainda circula pelo senso comum a ideia de que a teoria é chata ou muito distante da realidade. Seu protagonista, no entanto, adapta para o dia a dia da própria escola o que aprendeu num livro. Da mesma maneira, você faz um filme que é popular em forma e conteúdo, completamente envolvente e cheio de referências de peso. Foi desafiador encontrar essa fórmula que mantém um pé no entretenimento e outro na potência do discurso?
Sim, esse foi o grande desafio: como fazer um filme popular falando de conceitos e temas tão acadêmicos. Não sei se achei uma fórmula, porque isso enalteceria mais a mim do que ao filme. Prefiro dizer que fui influenciado por manifestações da diáspora africana, como o hip-hop, o reggae, e o samba. São manifestações pretas, populares, que sempre evocaram mestres e ativistas que tentaram libertar seu povo. Mas pensei em como fazer isso através de um filme. Popular e denso. Alguns críticos taxaram o filme pejorativamente de "maniqueísta" ou "didático". É que o filme aborda uma história que se passa em 36 horas, num momento decisivo, em que todos os personagens estão diante de um dilema que precisa se resolver rápido. Assim fica difícil aprofundar a subjetividade de cada um dos mais de 20 personagens principais. Na circunstância do filme, ou a pessoa é contra ou a favor do Saulo. Era isso que me interessava, confrontar meus personagens diante de um dilema. E se a narrativa se passa no ambiente escolar, com a teoria virando ação direta, é claro que o didatismo é parte essencial do filme.
Cabeça de Nêgo tem personagens mulheres que não são exatamente protagonistas da trama, mas que são muito interessantes e centrais naquele universo (a professora aliada, a mãe afetuosa, a companheira de grêmio, a adolescente grávida que é também representante dos alunos). Como nasceram essas personagens para você?
As personagens femininas são todas referências reais na minha vida pessoal. Embora há quem diga que o personagem Saulo é autobiográfico - por causa da minha paixão por movimentos sociais, sobretudo os Panteras Negras - tanto o Saulo como as mulheres do filme são inspiradas em pessoas reais com as quais eu convivi ou ainda convivo. As mulheres pretas e indígenas sempre foram sinônimos de luta na minha família, no meu círculo de afetos e nos movimentos que eu admiro. Assim como o Saulo, nós homens muitas vezes somos muito impulsivos, atabalhoados. Mulheres são mais articuladas, mais inteligentes, cada uma a seu modo. Sem Mayandra, Clarisse e a professora Elaine, Saulo jamais teria êxito em suas pretensões coletivas.
"Fazer cinema independente sem políticas públicas e sem precarização no Brasil é algo reservado somente a quem sempre foi historicamente privilegiado"
A trajetória do filme começa em 2016, certo? Desde então, muita coisa aconteceu no país. Vivenciamos alguns momentos importantes de levantes sociais do movimento negro, dos povos indígenas, dos trabalhadores precarizados, das mulheres... Mas também sofremos golpes muito duros. O desenrolar de Cabeça de Nêgo parece acompanhar esse nosso movimento cíclico de revoluções/contrarrevoluções e me fez lembrar de um pensamento do diretor argentino Fernando Birri: “A utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar.”
Cabeça de Nêgo seria um convite a não deixar de caminhar? Foi consciente terminar um filme que escala de uma revolução individual para um movimento coletivo da forma como ele termina ou simplesmente a fidelidade à realidade desembocou ali?
Que bom que você toca nesse assunto, e que maravilha que você menciona o Birri, porque o filme nasce conscientemente com essa pretensão utópica, sem as maquiagens românticas de uma estética hegemônica. Foi consciente terminar o filme com a grande questão que está no olhar do Saulo: "e você? de que lado está?"
Aproveitando, como foi filmar o final?
A cena final do filme era outra. Durante a montagem/edição, eu e o incrível montador/realizador Guto Parente percebemos que o final que tinha no roteiro, e que havia sido filmado, estava tirando a força das cenas documentais de arquivo. Então chamamos o Lucas Limeira (Saulo) para filmá-lo numa cena isolada, que é exatamente a cena final do filme.
E como foi a experiência de lançar um filme durante uma pandemia? Como aconteceu de o filme ir para o Globoplay?
Embora o filme estivesse estruturalmente pronto desde julho de 2019, foi somente em janeiro de 2020 que fizemos a correção de cor, terminamos definitivamente a mixagem e deixamos tudo pronto. O filme "nasceu" em janeiro de 2020 e estreou no festival de Tiradentes. Meses depois, com a pandemia, interrompemos todas as negociações com possíveis distribuidoras para preservarmos nossas vidas e só retomamos em meados de 2021, que é quando chega a distribuidora Talita Arruda (ex-Vitrine Filmes). A Talita então começou a negociar a estreia comercial do filme em salas de cinema e licenciou o filme para a Globoplay.
Para terminar, Cabeça de Nêgo tem sido considerado um dos grandes destaques do cinema brasileiro em 2021 e é um filme contemplado por um edital do Ministério da Cultura, que já nem existe mais. Então, gostaria que você comentasse um pouco, a partir da sua experiência individual, sobre como é fazer cinema independente hoje no Brasil.
É muito importante enfatizar esse ponto. Esse filme jamais aconteceria sem investimento em políticas públicas para o setor. Através desse edital (Longa B.O. Afirmativo), que é fruto de uma luta coletiva de profissionais negros/negras do audiovisual brasileiro, eu consegui viabilizar o Cabeça de Nêgo, a Viviane Ferreira viabiliza Um dia Com Jerusa (destaque na Netflix) e o Gabriel Martins viabiliza Marte Um (que acaba de ser selecionado para estrear mundialmente no notável festival de Sundance, EUA). Então, fazer cinema independente sem políticas públicas e sem precarização no Brasil é algo reservado somente a quem sempre foi historicamente privilegiado. É necessário que haja uma retomada urgente dessas políticas públicas para que mais pessoas pretas, mais indígenas, mais mulheres, comunidade lgbtqia+, e mais pessoas pobres em geral, tenham acessos a financiamentos que culminem em produções como essas citadas.