ERA UMA VEZ NA AMÉRICA LATINA #8
A sub-representação latino-americana em Hollywood e o discurso controverso de Javier Bardem I “Bestia” indicado ao Oscar 2022 de Melhor Curta-metragem de Animação I “Utama” se destaca em Sundance
Logo após saber ter sido indicado ao Oscar 2022 por sua atuação em Being the Ricardos, junto de sua companheira Penélope Cruz, essa indicada por Madres Paralelas, Javier Bardem fez um discurso um tanto quanto controverso: “Falemos das minorias espanholas. Quantos personagens espanhóis há no cinema internacional? Nenhum. Não há personagens espanhóis fora da cinematografia espanhola. Há personagens latino-americanos. Eu sei do que falo quando falo de minorias”, reclamou o ator espanhol.
Ao falar em “cinema internacional”, Bardem se refere, claro, ao cinema hollywoodiano, que é o que melhor escoa a nível global. De fato, poucos são os personagens, as produções ou os diretores espanhóis em Hollywood. Para além disso, a reclamação do ator teria sido motivada por críticas que ele havia recebido por ser um espanhol interpretando um personagem cubano no filme que o fez ser nomeado ao Oscar. Daí o “não há personagens espanhóis fora da cinematografia espanhola. Há personagens latino-americanos”. Algo como “não há personagens espanhóis para interpretar, então restam os latinos”.
A reclamação, apesar de até fazer algum sentido, foi bastante limitada, e esbarrou no grande equívoco de ignorar a sub-representação latino-americana na indústria estadunidense como parte significativa da mesma equação daquilo que o incomoda. Afinal, um ator espanhol “servir” para interpretar um personagem cubano por “falta” de atores cubanos que se encaixem no papel é tão desagradavel quanto um ator espanhol esbarrar na escassez de personagens espanhóis.
A situação inevitavelmente voltou a levantar a questão da representatividade, e por isso busquei alguns dados. De acordo com uma pesquisa recente divulgada pela Universidade do Sul da Califórnia, em 2019, os latinos, que somam 18.5% da população estadunidense, representaram apenas 4,5% dos personagens com falas em Hollywood. Na Califórnia e em Los Angeles, onde os filmes são feitos, a porcentagem de população latina é de 39% e 49%, respectivamente.
O estudo analisou 100 filmes de maior bilheteria nos anos entre 2007 e 2018, totalizando 1.200 títulos. A descoberta foi de que apenas 3% dos papéis principais eram interpretados por atores latinos. E 3% também é o número de nomes latinos nos créditos de produção dos filmes analisados. Dados da pesquisa revelam ainda que quase 25% dos personagens latinos eram delinquentes, e mais da metade desses (61%), associados ao tráfico de drogas. Em contrapartida, os latinos são um dos grupos demográficos que mais vão ao cinema. Correspondem a 18% da população dos EUA e compram 23% dos ingressos de cinema.
Diante de todas essas informações, só uma conclusão é possível: Javier Bardem falha enormemente ao desconsiderar latino-americanos como minoria no cinema hollywoodiano.
RECOMENDAÇÃO DE LEITURA: “A pele escura ainda é um problema em Hollywood, inclusive no filme latino do ano”
NOTÍCIAS
SUNDANCE
Utama ("Nosso Lar'', em quechua), primeiro longa-metragem do diretor boliviano Alejandro Loayza, venceu o prêmio do júri de Melhor Drama Internacional no Festival de Sundance deste ano. Trata-se de uma coprodução entre Bolívia, Uruguai e França que pretende discutir globalização, crise climática e pertencimento a partir dos impactos sofridos por comunidades tradicionais.
Como protagonistas, um casal de octogenários quéchuas que enfrentam uma seca devastadora no Altiplano e são forçados a, pela primeira vez na vida, pensar sobre migrar para a cidade.
“Queria mostrar uma realidade que está muito próxima das cidades. (...) Já há compatriotas que estão tendo que deixar seus lares por conta das mudanças climáticas”, explicou Loayza em entrevista à agência EFE.
Matéria do El País sobre a produção do filme.
OSCAR
Neste ano, nenhum filme latino-americano terminou entre os cinco indicados na categoria de Melhor Filme Internacional do Oscar - clique aqui para conferir a lista de todos os filmes da região que tentaram uma indicação. O chileno Bestia, entretanto, acabou indicado na categoria de Melhor Curta-metragem Animado.
É a segunda vez que o Chile consegue uma indicação nessa categoria. Em 2016, o curta Historia de Un Oso se tornou o primeiro filme chileno e a primeira animação latino-americana a ganhar uma estatueta.
Curiosamente, os dois curtas têm a ditadura militar como contexto. Dirigido por Gabriel Osorio, Historia de Un Oso condensa em 10 minutos, numa fabulação bastante melancólica, as violências que viveram os presos políticos, os exilados e os desaparecidos durante o regime militar pinochetista.
Já Bestia, de Hugo Covarrubias, tem como eixo narrativo a perspectiva dos algozes do período. A protagonista do curta é inspirada em Ingrid Olderöck, agente da ditadura de Augusto Pinochet que treinava mulheres para torturar mulheres. A trama se desenrola, então, como uma reflexão sobre a maldade, com foco no cotidiano de uma mulher mentalmente instável, que vive sozinha com seu cachorro e que é peça significativa do aparelho repressor de um regime brutal.
Matéria do jornal chileno La Tercera e matéria do G1
Bestia está disponível para compra e aluguel na plataforma Vimeo
BERLIM
O mexicano Manto de Gemas, de Natalia López Gallardo, único representante latino na competição oficial do Festival de Berlim deste ano, levou o Urso de Prata do Júri. Em seu primeiro longa-metragem como diretora, Gallardo conta a história de Isabel (Nailea Norvind), que, enfrentando uma separação, se muda com os filhos para uma mansão deixada pela mãe, numa zona rural do México. Ali ela se reencontra com a empregada doméstica que trabalhou toda a vida para a família e se depara com um tecido social arrasado pela influência do narcotráfico e dos desaparecimentos.
Nas mostras paralelas, o Brasil ganhou o Urso de Prata do Júri para curtas-metragens com o curta Manhã de Domingo, de Bruno Ribeiro; recebeu o Teddy Awards (prêmio dedicado a filmes de temática LGBTQIA+) por Três Tigres Tristes, de Gustavo Vinagre, longa de ficção que aborda as experiências de três jovens queer em São Paulo durante a pandemia de Covid-19; e ficou em terceiro lugar na votação do público que assistiu aos filmes da mostra Panorama com Fogaréu, da goiana Flávia Neves, estrelado por Bárbara Colen (Bacurau) e Eucir de Souza.
ARGENTINA
Ecos de un Crimen, de Cristian Bernard, é o filme argentino mais visto em seu país desde o início da pandemia. No meio de fevereiro, o longa contabilizava pouco mais de 80 mil espectadores, número que não era alcançado desde o expressivo sucesso de El Robo del Siglo, no início de 2020 - que chegou a superar 2 milhões de espectadores antes do fechamento das salas.
O thriller, protagonizado por Diego Peretti e Julieta Cardinali, deve estrear em breve na HBO Max e gira em torno de Julián Lemar (Peretti), um escritor de best-sellers de suspense que vai passar as férias com a família numa cabana afastada e acaba tendo o sossego perturbado por uma mulher que precisa de ajuda para escapar do marido assassino. Em Otros Cines.
PARA ASSISTIR EM CASA
Em Liborio, o diretor dominicano Nino Martínez remonta a trajetória de Olivorio Mateo Ledesma, conhecido na República Dominicana como Papá Liborio. Reza a lenda que o camponês, depois de desaparecer durante um furacão, em 1908, regressou ao sétimo dia, convertido em curandeiro, profeta, guerrilheiro e líder social.
Então, numa trama que considera o misticismo e a relevância histórica que envolvem tal figura, o filme procura reconstituir um pouco da relação entre esse líder afro-dominicano e seu grupo de seguidores, uma comunidade que pretendia viver à própria maneira nas montanhas do sul do país, e que por isso se transformou em alvo do colonialismo estadunidense.
O longa de estreia de Nino Martínez foi exibido na mostra competitiva do Festival de Rotterdam de 2021.
Disponível na MUBI Brasil