ERA UMA VEZ NA AMÉRICA LATINA #16
Mães de vítimas de desaparecimentos forçados: três filmes sobre o assunto I Primeiro filme acreano a estrear em circuito nacional chega à Netflix I Filmes da cubana Sara Gómez na MUBI I Cannes 2023
De acordo com a Anistia Internacional, uma vítima de desaparecimento forçado é alguém que desaparece do meio de seus familiares e de sua comunidade pelas mãos de agentes do Estado (ou de grupos que operam graças ao consentimento ou à omissão do Estado) que depois negam a detenção ou se recusam a revelar o paradeiro da pessoa desaparecida.
Talvez um dos casos mais emblemáticos de desaparecimentos forçados massivos no século XX seja o da última ditadura militar argentina. Entre 1976 e 1983, as forças de segurança do regime ditatorial sequestraram mais de 30 mil pessoas, muitas das quais nunca foram encontradas.
Foi nesse período que o movimento das Mães da Praça de Maio despontou no protagonismo da luta pela verdade, pela memória e pela justiça nos casos de desaparecimentos. Desde então, é impossível falar de desaparecimentos forçados sem pensar nas mães e familiares das vítimas, aqueles que de repente são submetidos a um estado permanente de alerta, incerteza, insegurança e angústia.
Não vivemos mais sob as ditaduras militares do século XX, mas o desaparecimento forçado ainda é frequentemente usado na América Latina como estratégia de dominação, difusão de terror e repressão política.
Nos últimos anos, o cinema da região tem dado conta de retratar as diferentes dinâmicas contemporâneas que envolvem as vítimas e as famílias (principalmente as mães) dos casos de desaparecimentos forçados em cada país.
No documentário “As Três Mortes de Marisela” (disponível na Netflix), por exemplo, o diretor mexicano Carlos Pérez Osorio registra a trajetória de Marisela Escobedo, a mulher que se tornou tão incômoda para o poder que, em dezembro de 2010, enquanto insistia em exigir justiça por sua filha em frente ao Palácio do Governo do estado de Chihuahua, acabou assassinada com um tiro na cabeça.
Marisela teve a filha de 16 anos, Rubí, desaparecida e assassinada por um namorado em Ciudad Juárez, a região fronteiriça entre México e EUA onde o feminicídio é sistematicamente usado pelos cartéis como performance de poder e técnica de disseminação de terror.
Foi somente através de suas próprias investigações, porém, que a mulher soube não estar lutando por justiça num “simples” caso de feminicídio: o assassino de sua filha era membro de um poderoso grupo de narcotraficantes da região. Um grupo com braços na polícia e nas instâncias de justiça. Era intocável, portanto.
Incansável em sua busca por justiça, Marisela Escobedo foi morta pela morte de Rubí, pela negligência e corrupção das instituições e autoridades e pelo tiro que atingiu sua cabeça com o intuito de que ela finalmente parasse de fazer barulho sobre o caso. Sua história, no entanto, tornou-se símbolo do ativismo pela vida das mulheres de Juárez.
Ainda falando em México, o drama “Sin Señas Particulares” (disponível no Prime Video), de Fernanda Valadez, conta a história de peregrinação de Magdalena (Mercedes Hernández), uma mãe em busca do filho que desapareceu enquanto tentava cruzar a fronteira com os EUA. As autoridades querem que ela assine um documento no qual reconhece a morte do garoto, mas não parece haver nenhuma evidência concreta de que seu filho esteja morto.
Decidida a descobrir o que de fato aconteceu, Magdalena parte em busca de pistas. Assim, a partir da jornada da protagonista, Valadez desbrava os trágicos destinos dos jovens que tentam cruzar a fronteira e acabam extraditados, mortos ou cooptados como soldados pelos cartéis.
Já no Brasil, com “A Mãe” (disponível para aluguel e compra nas plataformas digitais), Cristiano Burlan conta a história de Maria (Marcélia Cartaxo), uma migrante nordestina e vendedora ambulante em busca de seu filho, supostamente assassinado por policiais militares durante uma ação na vila onde mora.
Com a intenção de traçar um breve panorama do genocídio sistemático que acontece nas periferias brasileiras e das consequentes histórias de mães que procuram por seus filhos desaparecidos, o filme cruza a busca de Maria com a de outras mães, como as Mães de Maio - organização que buscou a mobilização de mães, familiares e amigos das vítimas dos Crimes de Maio de 2006 em São Paulo. Na época, policiais e grupos paramilitares de extermínio ligados à polícia promoveram o que chamaram de “onda de resposta” aos ataques do PCC. Mais de 400 jovens negros, afro-indígena-descendentes e pobres foram executados.
Cabe ainda fazer uma menção extra ao colombiano “Tantas Almas” (disponível para compra e aluguel nas plataformas digitais), de Nicolás Rincón Gille. Aqui, a trama acompanha José (José Arley De Jesús Carvallido Lobo), um velho pescador que viaja pelo Rio Magdalena procurando por seus filhos sequestrados pelos paramilitares - o rio Magdalena foi usado por décadas pelas milícias colombianas como vala comum para suas vítimas.
No percurso, acompanhado somente por uma persistência desesperada, José se depara com as várias manifestações de desencanto de um país dilacerado pelas regras impostas pelas organizações paramilitares.
Cada vez mais consumido pela angústia, no rio de onde sempre tirou seu sustento, esse pai deseja ao menos conseguir recuperar os corpos dos filhos, evitando assim que se transformem em outras das tantas almas que vagam pelo Magdalena. Crítica de “Tantas Almas” aqui.
PARA ASSISTIR EM CASA
NETFLIX
NOITES ALIENÍGENAS
Considerado o primeiro longa-metragem acreano a estrear em circuito nacional, “Noites Alienígenas” apresenta a história de três personagens da periferia de Rio Branco impactados pelo conflito entre facções criminosas e pela violência urbana, que, nos últimos dez anos, quase triplicou o assassinato de crianças e jovens no Estado do Acre.
Sérgio de Carvalho, diretor e roteirista do filme, destaca que, ao situar a trama numa Amazônia urbana, o filme apresenta um lado da região pouco mostrado no cinema. “A gente conhece tão pouco e fala tão pouco dessa Amazônia urbana que também é completamente ligada à Amazônia das florestas, e que tem uma riqueza de culturas muito grande.”
¡QUÉ VIVA MÉXICO!
Em “¡Qué Viva México!”, outra vez o provocador Luis Estrada, sempre interessado na sociologia mexicana, apresenta uma sátira política que questiona os valores e os comportamentos do país. Dessa vez, porém, a partir da instituição família.
Outros três filmes do diretor, “A Lei de Herodes" (1999), “El Infierno” (2010) e "A Ditadura Perfeita" (2014), também estão disponíveis na Netflix.
Na terceira semana de maio, “¡Qué Viva México!” tornou-se o filme de língua não inglesa mais visto no mundo pelos assinantes da plataforma.
1976
Dirigido por Manuela Martelli, o chileno “1976” conta a história de uma dona de casa de classe média que tem a tranquilidade de seu cotidiano abalada quando o padre amigo da família lhe pede para que, por piedade, esconda em sua casa de praia um jovem ferido na luta contra a ditadura de Pinochet.
Esse é o primeiro longa-metragem dirigido por Martelli, que ficou internacionalmente conhecida por ter atuado em “Machuca”, clássico do cinema chileno sobre a ditadura militar.
CHUPA
Dirigido por Jonás Cuarón, filho do grande diretor mexicano Alfonso Cuarón (Roma, 2018), e produzido por Chris Columbus, mesmo produtor de “Harry Potter e a Pedra Filosofal”, o estadunidense “Chupa” revisita a lenda do chupa-cabra transformando-a numa história de amizade, fantasia e aventura que muito tem sido comparada ao clássico “E.T”, de Steven Spielberg. O elenco conta com atores mexicanos e estadunidenses.
MUBI
MANTO DE GEMAS
Em seu primeiro longa-metragem, a diretora Natalia López Gallardo conta a história de Isabel (Nailea Norvind), que está enfrentando um processo de divórcio e, por isso, se muda com os filhos para uma mansão deixada pela mãe numa zona rural do México. Ali ela reencontra a empregada doméstica que trabalhou toda a vida para a família e se depara com um tecido social arrasado por questões de classe e pela influência do narcotráfico e dos desaparecimentos.
Filme vencedor do Prêmio do Júri no Festival de Berlim 2022.
SARA GÓMEZ
Dois filmes da cineasta cubana Sara Gómez estão disponíveis no catálogo da MUBI Brasil. O primeiro é o curta-metragem “Iré a Santiago”, uma homenagem afetuosa da diretora a Santiago de Cuba e a sua população afro-cubana. E o segundo é “De Cierta Manera”, seu primeiro e único longa-metragem, gravado em 1974 por Gómez e terminado em 1977, após sua morte, por Tomás Gutiérrez Alea e Julio García Espinosa. Misturando filmagens documentais com o roteiro de ficção, o filme retrata a realidade dos bairros pobres de Havana logo após a Revolução Cubana de 1959.
Sara Gómez foi a primeira mulher diretora do Instituto Cubano de Arte e Indústria Cinematográfica (ICAIC) e uma das poucas mulheres negras na instituição. Também é considerada a primeira cubana a dirigir um filme no país e a única diretora de longa-metragem por mais de 30 anos. Morreu precocemente, aos 31 anos, devido a complicações em seu quadro de crises de asma.
NOTÍCIAS
CANNES
"Retratos Fantasmas", novo filme de Kleber Mendonça Filho, teve sua première mundial na Seleção Oficial do festival, em Sessão Especial, fora de competição
O filme é fruto de sete anos de trabalho de pesquisa, filmagens e montagem, e tem como personagem principal o centro da cidade do Recife como espaço histórico e humano, revisitado por meio dos grandes cinemas que atravessaram o século XX como espaços de convívio.
Outro diretor brasileiro veterano a marcar presença no evento foi Karim Aïnouz, que já havia ganhado em 2019 o prêmio da seção Um Certo Olhar por “A Vida Invisível de Eurídice Gusmão”. Neste ano ele competiu pela Palma de Ouro, principal prêmio do Festival, com “Firebrand", um drama histórico inglês sobre Catarina Parr, última esposa do rei Henrique VIII.
Já “Levante", uma coprodução Brasil/Uruguai/França, é o primeiro longa-metragem de Lillah Halla, diretora brasileira feminista que estudou em Cuba e fez sua estreia em Cannes com o curta “Menarca” (2020). A trama, selecionada para a Semana da Crítica, acompanha Sofia (Domênica Dias), uma adolescente jogadora de vôlei que descobre que está grávida e decide recorrer ao aborto, entrando em conflito com as leis de proibição no Brasil. “Levante” foi considerado pela Federação Internacional dos Críticos do Festival de Cannes o melhor filme das seções paralelas e da Quinzena dos Realizadores.
O português João Salaviza e a brasileira Renée Nader Messora apresentaram na seção Um Certo Olhar “A Flor de Buriti”, documentário sobre a luta de décadas dos Krahô pela defesa de seu território no norte do Tocantins. Há cinco anos, na mesma seção do festival, “Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos” recebeu o Prémio Especial do Júri. Dessa vez, os diretores receberam o prêmio do júri de Melhor equipe.
Também na seção Um Certo Olhar competiram o chileno "Los Colonos" , de Felipe Gálvez, faroeste sobre o massacre de indígenas que aconteceu durante a conquista da Terra do Fogo, no extremo sul do país; e o argentino "Los Delincuentes", de Rodrigo Moreno, um thriller protagonizado por dois amigos bancários que odeiam a tediosa rotina que levam no centro de Buenos Aires. Um deles comete um roubo e descobre uma alternativa à vida monótona a que estava habituado, mas isso compromete o destino de ambos.
“Los Colonos” recebeu o prêmio FIPRESCI da crítica internacional e já foi adquirido pela MUBI, deve estrear em breve na plataforma.
Entre os curtas-metragens, destaque para “La Perra”, único filme colombiano presente na edição 2023 de Cannes. Dirigido por Carla Melo Gampert, o curta em animação competiu pelo Palma de Ouro dos curtas e tornou Gampert a primeira mulher colombiana a fazer parte da competição oficial do evento.
Matéria do Infobae sobre todas as participações latinas no 76º Festival de Cannes.
RICARDO DARÍN NA NETFLIX
Já começaram as gravações de “O Eternauta” (El Eternauta), série original Netflix baseada na história em quadrinhos de ficção científica homônima criada pelo argentino Héctor Oesterheld - preso, torturado e desaparecido durante a ditadura militar; acredita-se que Oesterheld tenha sido assassinado entre 1977 e 1978, e até hoje seu corpo não foi encontrado.
Essa é a primeira vez que “O Eternauta”, considerado grande clássico dos gibis argentinos, ganha uma adaptação audiovisual. Repleto de referências políticas contra a ditadura, o quadrinho acompanha um grupo de sobreviventes de uma nevasca mortífera que cai sobre Buenos Aires. Dias depois do início da nevasca, o grupo, liderado por Juan Salvo (que será interpretado na série por Ricardo Darín), descobre que o fenômeno foi provocado por uma invasão alienígena.
“O verdadeiro herói de ‘O Eternauta’ é um herói coletivo, um grupo humano… o único herói válido é o herói ‘em grupo’, nunca o herói individual, o herói solitário”, costumava dizer Oesterheld.
FILMES EM LÍNGUAS ORIGINÁRIAS SÃO DESTAQUE EM PREMIAÇÃO PERUANA
Aconteceu em 3 de maio a 14ª cerimônia dos Prêmios APRECI (Asociación Peruana de Prensa Cinematográfica), a premiação que reconhece o melhor do cinema peruano lançado no ano anterior.
Nesta edição, filmes falados em quéchua e aimará chamaram atenção por reunir a maior quantidade de indicações. “Mataindios”, “Pachuka” e “Willaq Pirqa, el cine de mi pueblo” somaram um total de dez indicações. Esse último, que se manteve em cartaz no país por três meses, competiu nas categorias de Melhor filme de ficção, Melhor diretor, Melhor Roteiro, Melhor atriz principal e Melhor ator principal.
Já consagrado como um dos sucessos mais importantes do cinema peruano em 2022, “Willaq Pirqa, el cine de mi pueblo” conta a história de uma pequena comunidade nos Andes descobrindo a magia do cinema - e se deparando com dificuldades para entender o espanhol dos filmes.
Curiosamente, a primeira projeção do longa também foi a primeira vez em que o pequeno Victor Acurio, ator protagonista da trama, assistiu a um filme no cinema. “Quando vejo ‘Willaq Pirqa’, minha compreensão é mais rápida do que quando vejo ‘Avatar’, porque não tenho que ler as legendas enquanto me concentro no vídeo", comentou o ator. Em Infobae
THE LATIN HOUSE OF HORROR
A produtora espanhola El Estudio e as mexicanas Morbido e Sula Films anunciaram o lançamento do selo “The Latin House of Horror”, iniciativa que pretende incentivar a produção e a distribuição de filmes de gênero falados em espanhol e criados por novos talentos da Espanha e, principalmente, da América Latina. A comercialização internacional das produções do selo ficará a cargo da agência espanhola Film Factory Entertainment.
Foram divulgados em Cannes alguns dos títulos do projeto que devem chegar aos cinemas em breve. Entre eles está “Ese Verano a Oscuras”, segundo longa-metragem da mexicana Michelle Garza Cervera, que recentemente conquistou público e crítica com “Huesera”, seu trabalho de estreia, uma metáfora de horror sobre a maternidade.
“Ese Verano a Oscuras” é uma adaptação do livro homônimo da argentina Mariana Enriquez. Ambientado num verão dos anos 1990, na Cidade do México, o filme conta a história de duas amigas adolescentes obcecadas por histórias de assassinos em série. Quando um vizinho mata a esposa e a filha, porém, as garotas têm seu fascínio pela violência desafiado. Em Variety