ERA UMA VEZ NA AMÉRICA LATINA #32
ENTREVISTA: Danilo do Carmo comenta os bastidores de "Lo Que Queda en el Camino", filme que acompanha uma caravana de migrantes centro-americanos até a fronteira dos EUA/ Crítica: A Filha do Pescador
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ENTREVISTA: LO QUE QUEDA EN EL CAMINO
“Faça um esforço por seus filhos”
“Não deixe que machuquem eles”
“Não deixe ninguém tocar neles”
“Não fique chorando”
“Não deixe as meninas sozinhas”
“Não perca nenhum deles pelo caminho”
Esses são os conselhos que a guatemalteca Lilian recebe antes de partir da fronteira da Guatemala com o México junto a uma das tantas caravanas de migrantes centro-americanos que percorrem mais de 4 mil quilômetros rumo aos EUA. Aos 29 anos, sozinha com quatro filhos pequenos e umas poucas bagagens, ela deixa para trás seu país de origem fugindo da violência doméstica e da falta de perspectivas.
Como tantas outras mulheres centro-americanas, Lilian enxerga na caravana, no migrar em grupo, uma melhor opção para tentar concluir o deslocamento evitando abusos, tráfico humano e até a morte.
Na mesma caravana, tentando entender e registrar as nuances desse fenômeno migratório, viajam os diretores Jakob Krese (Alemanha) e Danilo do Carmo (Brasil). Quando os caminhos dos três se cruzam, Lilian se torna protagonista do documentário “Lo Que Queda en el Camino” (“O que Fica pelo Caminho”, em tradução livre), lançado ontem (18) nos cinemas brasileiros.
Resultado de uma viagem de meses, o filme procura retratar de dentro, sob o recorte das experiências de Lilian e seus filhos, o que é uma caravana migrante, desde seu início até o fim. Um documentário riquíssimo em material e narrativa, com uma personagem principal tão cativante quanto sobrecarregada, que cresce a cada minuto, à medida que a observamos enquanto mulher, mãe solo e migrante, acompanhamos suas interações com outros migrantes e entendemos sua história, suas motivações, seus sonhos, expectativas e angústias.
Filmado em 2019, “Lo Que Queda en el Camino” escolhe dar rosto, nome e contexto a pessoas que, vitimadas pelos dilemas centro-americanos mais profundos da contemporaneidade (violência de gênero, especulação imobiliária, dificuldade em viver do próprio trabalho, ameaças de grupos criminosos conhecidos como pandillas) e quase sempre tratadas como estatística, são forçadas ao deslocamento.
Vale mencionar, aliás, que Lilian já havia aparecido num curta-metragem de 2020 dos diretores, intitulado “La Espera” e atualmente disponível de graça na plataforma Vimeo. Nele, Krese e Do Carmo usam parte do material gravado durante a caravana para elaborar um outro tipo de recorte: o das diferenças de expectativas entre homens e mulheres migrantes sobre a passagem do La Bestia, o trem de carga (conhecido como trem da morte) que milhares de pessoas utilizam como modo de transporte para atravessar o deserto mexicano rumo aos EUA.
“Lo Que Queda en el Camino” está em cartaz em São Paulo, Aracajú, Belo Horizonte, Salvador, Palmas e Porto Alegre e há previsão de estreia também em outras capitais e cidades do interior.
O diretor Danilo do Carmo concedeu uma entrevista ao Era Uma Vez na América Latina. Confira a seguir:
Danilo, para começar, como aconteceu sua parceria com Jakob Krese e que motivações vocês tiveram para acompanhar uma caravana de migrantes centro-americanos?
Conheci o Jakob quando fui estudar na Alemanha, na mesma faculdade que ele estudava, em 2013. Aí nos identificamos porque ele já tinha uma relação muito forte com a América Latina. Eu também tinha, por ser de Santa Catarina, e a gente [de lá] ter uma conexão maior com o Cone Sul. Eu já tinha morado na Argentina e tal, então nos encontramos através da questão da língua e da questão cultural. E a gente teve uma relação muito boa, eu fiz uma pequena participação num projeto que ele tinha contando a história da Eslovênia. Também tinha conhecido o Annika (Anikka Mayer), que é o outro diretor de fotografia, nesse mesmo período. Estudamos os três juntos. E aí quando aconteceu a caravana o Jakob me escreveu. Ele tinha tido uma experiência de observador de direitos humanos na Guatemala, em relação às mortes de populações indígenas durante a ditadura, e tinha morado com os zapatistas no sul do México por alguns meses. Então ele conhecia esse contexto de migração e de dificuldades sociais na América Central.
Viajamos três semanas depois dele me contatar e fomos primeiro para Tijuana, no momento em que já tinha chegado a primeira grande caravana, aí a gente começa a gravar com alguns jovens, a conhecer o pessoal das caravanas que iam chegando com diferentes perfis, e começa a entender a complexidade da realidade desses migrantes que estavam viajando nessas caravanas.
Como foi o processo de encontrar uma protagonista para o filme? Como Lilian apareceu e aceitou participar?
Estávamos gravando com um grupo de homens de 20 a 25 anos e percebemos tanto nosso viés enquanto três homens contando essa história de homens migrantes quanto a questão de como que a mídia em geral tem dificuldade em retratar com profundidade esse universo das mulheres. Já estávamos em contato com algumas mães, tanto mães que viajavam com os filhos quanto mães que deixaram os filhos para trás para viajar, e reparamos justamente que era uma realidade que não estava sendo contada. Quisemos superar alguns desses enviesamentos que estavam rolando e entender a complexidade dessas mães, das histórias dessas mulheres. Então fomos para caravana que ia sair em seguida, onde já estávamos mais conectados com as pessoas que faziam apoio, que tinham projetos, como o Irving, que aparece no final do filme, o “papá Irving”, ele sempre esteve envolvido em movimentos de ajudar a comunidade lgbtqia+, então a gente tinha uma visão de alguém que conhecia muito das realidades das pessoas em vulnerabilidade social e decidiu ir atrás de mulheres mães que estivessem viajando.
Com esse olhar, gravamos com várias pessoas. Começamos a procurar [uma protagonista mulher] em San Pedro Sula, em Honduras, de onde saía a caravana. Na verdade, gravamos com quatro mulheres durante todo o percurso, em diferentes contextos, porque as trajetórias são um pouco diferentes, mas Lilian se mostrou uma personagem muito rica e muito interessante desde o início. Estávamos gravando uma dinâmica familiar de uma mulher com marido e dois filhos quando conhecemos a Lilian, então ela já se aproxima sabendo que estamos gravando, entrando como personagem secundária dentro dessa gravação familiar, e ela vai se abrindo, participando. Nos apaixonamos pela complexidade e pela riqueza da dinâmica familiar que ela tinha com suas crianças, a alegria, como um ajudava o outro. Ao mesmo tempo, Lilian, que é uma pessoa muito reclusa, também é muito aberta diante da câmera. Conseguimos criar uma relação de confiança e intimidade com ela e com as crianças. Apoiamos muito ela, todo mundo se apoiava. Aos poucos fomos entendendo nosso lugar na caravana e nosso lugar em relação às pessoas que estávamos gravando. Sempre foi um lugar de apoio. Não tanto financeiro, porque nós mesmos também não tínhamos muito dinheiro, mas com informação, com conexão de celular, com organização das pessoas e, sobretudo, na questão da proteção pela presença da câmera. Nós nos integramos à caravana, dentro das nossas possibilidades. Acho que a Lilian soube reconhecer tudo isso e fomos criando proximidade.
O registro da infância em deslocamento, tal como o recorte de gênero, aparece como ponto-chave do filme. Foi uma abordagem intencional desde o início ou aconteceu durante as gravações?
Esse recorte de gênero é intencional a partir do momento em que fizemos a primeira gravação lá na fronteira, em Tijuana, e começamos a entender a complexidade da experiência migrante sobretudo sob a perspectiva das mulheres. A dimensão da infância foi crescendo conforme fomos gravando. Já tínhamos a clareza de que era importante, mas acho que hoje vemos o filme como um filme sobre maternidade não só da perspectiva da mãe, mas também da perspectiva dessas crianças. Uma cena que é muito chave para entendermos o filme é a cena em que eles vão para o rio. Uma cena que é vista da perspectiva do Sérgio, o filho mais velho de Lilian. Ali tem uma questão forte acerca dos aprendizados sobre papéis de gênero. Ele vê aqueles homens brincando de dançar juntos, com uma homofobia muito clara que logo descamba para uma violência recreativa, homens que não estão fazendo nada, só bebendo cerveja, se divertindo e brigando como crianças, enquanto as mulheres estão lavando roupas, e fica dividido entre gostar daquela cena, se divertir com aquilo, e precisar ajudar a mãe com a função doméstica.
Ali entendemos que essa dinâmica familiar era muito chave para termos uma visão mais completa dessa questão de gênero que já era nossa abordagem desde o início, nosso olhar. E um olhar que queria muito ressaltar individualidade, porque reportagens têm uma tendência muito forte de massificar pessoas. Na verdade, o que a gente estava vendo eram pessoas fugindo de situações muito duras em seus países, principalmente mulheres fugindo de violência doméstica e outros tipos de violências atreladas a gênero, como falta de perspectiva de trabalho que não seja prostituição ou então mães criando filhos sozinhas porque os maridos foram assassinados pelo tráfico, pelas pandillas.
É muito difícil tirar essa lente da migração só. Óbvio que o filme é muito sobre migração, mas acho que às vezes falta uma capacidade nas pessoas de terem empatia com essas pessoas migrantes naquilo que elas têm em comum para além da situação de migração.
A Lilian se revela uma personagem rica em muitos aspectos, porque depois também aparece uma questão sobre a sexualidade dela…vocês sabiam desde o início ou ela se abriu com a convivência?
Isso apareceu no último dia de gravação. Nós não gravaríamos nesse dia da gravação daquela conversa, que é encenada, né. É uma conversa com o Tony, que acabou muito integrado à equipe, inclusive tem crédito de assistente de produção porque em algum momento ele começou a trabalhar com a gente. Nós só conseguimos conversar sobre isso, e aí é uma coisa forte de gênero, no único dia que conseguimos sair com a Lilian para tomar alguma coisa com ela sozinha, sem os filhos. Tanto é que a gente grava enquanto acontece nosso churrasco de despedida, porque precisávamos abordar e vimos que ela estava aberta. E é muito complexo. Ela se abre, mas é uma questão que acaba não tendo espaço para se desenvolver no período em que ela se dispôs a compartilhar e abrir a vida dela.
Sob a perspectiva de Lilian, principalmente a partir de seus comentários, o filme transmite a dimensão da solidão e dos perigos aos quais esses migrantes se expõem no trajeto até os EUA. Ao mesmo tempo, vocês optam por dar ênfase no senso de comunidade e solidariedade que acompanha a caravana. Queria que você comentasse um pouco sobre essas escolhas narrativas, sobre as dimensões políticas dessas caravanas.
Tínhamos também a ambição um pouco maior de ter uma perspectiva sobre o funcionamento da caravana nesse sentido mais político de auto-organização. O Jakob, no filme que trabalhamos juntos sobre a Eslovênia, tinha uma questão de que a Iugoslávia tem uma tradição socialista diferente da União Soviética e que vem das fábricas de autogestão. É uma questão que sempre foi muito cara para ele e que desenvolvemos juntos.
Existe até uma personagem que tem um papel de liderança, que é a Karen, aquela que fala no megafone em determinado momento, que discute com o policial. Ela é uma das personagens que acompanhamos, tanto é que é uma das poucas cenas que a gente deixa a visão da Lilian e vai para uma outra discussão onde ela não estava tão presente.
Também é uma viagem muito arriscada. Outros relatos que contam essa história dão conta mais dessa outra dimensão de tráfico de pessoas, de trafico de órgãos, de como o crime se aproveita da vulnerabilidade dessas pessoas.
Mas temos uma clareza enorme de que nossa verdade é muito mais subjetiva e emocional da experiência da protagonista que estamos apresentando, porque obviamente não damos conta de trazer uma realidade tão complexa como a de uma caravana num filme de uma hora e meia. Então escolhemos recortes. Lilian estabelece outras relações ao longo da caravana, por exemplo, mas achamos que a relação mais forte que ela construiu foi com a Maria, essa abuela (avó). Uma relação que se reproduzia muito. Era muito comum as mulheres terem essas mulheres mais velhas, que já tinham seus filhos criados e que se uniam a elas para dar um apoio. A Karen também tinha uma abuela que se juntou a ela. Esse âmbito da sororidade era muito forte. Isso mostra um pouco sobre as dinâmicas da caravana. Lilian sofreu machismo no percurso. Existe uma união coletiva assim como há conflitos individuais e laços individuais.
Nesse contexto, deixamos um pouco de lado a ambição inicial e entendemos que a dimensão poética e subjetiva tinha um apelo muito mais universal sobre o que é a experiência de ser uma mulher mãe solo migrante, ou sobre o que é a experiência de migração de forma geral. A força é das pessoas que se juntam e ela só é tão grande porque essas pessoas precisam.
Quais foram os desafios práticos de gravar um documentário em movimento, durante tanto tempo, numa situação de tanta vulnerabilidade? E como foi a logística de acompanhar a caravana? Como foi a convivência com as pessoas? Eram quantos na equipe? Em algum momento vocês se sentiram inseguros?
Acho que o filme só tem a qualidade que tem, em linguagem cinematográfica mesmo, porque é um filme onde se sente a presença da câmera no meio das pessoas, não é um filme que filma esse fenômeno de longe, como objeto de estudo. É um filme que se integra à caravana. Optamos por deixar as batidas que às vezes a câmera recebia, o esforço de subir junto nos transportes, o barulho do vento nos microfones… porque nós estávamos lá junto com eles, viajando junto com eles. A gente não ficava dormindo em hotel nem tinha transporte à parte. É um cinema que não está no lugar da megaprodução. Éramos três pessoas viajando com a caravana, Jakob, Anikka e eu fazendo tudo, claro que com o apoio da caravana. Em um momento ou outro, quando ficávamos doentes, a gente ia para um hotel barato, como os próprios migrantes faziam às vezes. Mas é isso, dormimos com eles, viajamos com eles em trens de carga e caçambas de caminhão.
Obviamente que nós estávamos ali por opção, enquanto eles estavam ali por falta de outras opções. Era um propósito diferente, não era uma necessidade socioeconômica. E aos poucos fomos entendendo que fazíamos parte da caravana no sentido de apoio, especialmente na articulação com as pessoas que estavam organizando o deslocamento.
Essa presença fez com que as pessoas se abrissem. Na cena onde eles brincam de fazer entrevista, sabe o que aconteceu antes? Tinha passado um carro de uma equipe de jornalismo que inclusive a gente conhecia e que vinha acompanhando a caravana. Os caras abriram a porta da van, com a câmera montada do lado, gravando quase como se fosse um travelling, o jornalista fez as perguntas de dentro da van, fecharam a porta e foram embora.
Nós, que estávamos lá 24 horas, ajudando a resolver questões práticas como viajantes junto com eles, estabelecemos um outro lugar de relação. Era muito demandante, era muito difícil, dormimos muito pouco, como eles dormiam. Os jovens queriam sair antes das cinco da manhã, como havia sido combinado, as mulheres tinham que trocar fralda, organizar as cobertas de cinco crianças, e os jovens já lá na frente indo embora.
Houve momentos tensos na caravana, de ameaças de narcotraficantes, a questão da polícia, dias difíceis de não conseguir chegar na cidade planejada, todo mundo cansado sem se hidratar direito, insolação, bolhas nos pés.
Fizemos questão, por exemplo, de mostrar aquela cena da Blanca (filha de Lilian) carregando a bolsa. Óbvio que depois cortamos e carregamos a bolsa pra ela. Mas quando conheci Lilian e as crianças, e foi um momento decisivo em que olhei e pensei “tem uma história aqui”, eu estava viajando com os nossos equipamentos, acompanhando a Lilian, já cheio de coisas, e a Lilian viajando com uma criança atrás, dando a mão para outras duas, a Blanca tentando carregar uma garrafa de três litros de Coca-Cola cheia de água, uma criancinha super pequena. Uma família que… como eles dariam conta? Então gravamos essa cena com a Blanca para retratar a dureza do caminho. Quando desligávamos a câmera, carregávamos as coisas deles.
O documentário é um relato, é uma construção narrativa compartilhada, e a gente vê que a Lilian construiu muito com a gente esse relato. Claro que ela tem outro domínio da linguagem audiovisual, mas foi tudo muito construído com ela, com as coisas que ela se dispôs a abrir. Tudo muito negociado sobre o que ela gostaria de contar. Ela disse pra gente que fazia questão de contar essa história para que outras mulheres soubessem o que é viajar nesse contexto.
Fronteiras também são um tema central no filme. Por semanas vocês acompanharam pessoas que por diferentes razões se sentiram forçadas a iniciarem um deslocamento, mas que com um mesmo objetivo marcharam pelo continente. Como você sentia, junto da caravana, subjetiva, política e fisicamente, esses espaços de fronteiras?
São muitas realidades de fronteiras diferentes. Tivemos uma primeira experiência de fronteira nos EUA porque chegamos direto em Tijuana, o que nos deu uma perspectiva que é desafiadora mas às vezes viável no documentário, que é você ter uma noção de qual é o horizonte de possibilidades que seus personagens têm. Conhecíamos já a situação na fronteira, então sabíamos o que os esperava quando eles chegassem lá, quais eram os diferentes destinos possíveis, as diferentes nacionalidades que recebiam diferentes tratamentos. Então a caravana é um esforço coletivo para um destino que será individual. A fronteira é como uma peneira, tanto é que o muro é vazado, esse muro tem uma aparência complexa quando chegamos lá. São pessoas que fazem um esforço danado para atravessar mais de quatro mil quilômetros e encontram nesses últimos metros, que é atravessar de fato a fronteira, desafios que não são físicos, são de formação, jurídicos. A Lilian, a gente acaba não mostrando claramente no filme, é praticamente analfabeta funcional, e nós fomos descobrindo essas questões ao longo do processo.
Essa é uma fronteira, mas o próprio México, por ter uma tradição de migração centro-americana muito forte, tem uma série de controles fronteiriços internos que é uma realidade que nunca imaginei. Você pega um ônibus interestadual no México e seu passaporte já é controlado. Nessa caravana, a maior parte das pessoas tinha visto migratório, visto humanitário, então elas poderiam fazer esse cruzamento. Mas viajar pelo México já é um primeiro desafio que elas encontram. Além disso, e dos preconceitos de raça e classe, há burocracias que são muito desafiadoras para pessoas que têm uma educação formal muito baixa.
O fenômeno das caravanas acontece num momento político muito específico em que você tem o governo Trump [nos EUA] e o Peña Nieto saindo do governo [no México]. Como estava em fim de governo, Penã Nieto não quis comprar o conflito de impedir que esses migrantes seguissem viagem. E quem tinha sido eleito, Manuel López Obrador, tinha um discurso muito pró-migrante. Então é uma brecha política que se abre. Os migrantes sempre tentavam ir o mais longe possível, começa até como uma questão religiosa, com uma lógica de procissão, com os migrantes indo só de uma cidade para outra, também como uma manifestação, e aí aos poucos vai se tornando um meio de viajar. Só que dificilmente a viagem avançava para depois da Cidade do México. No momento em que ninguém quer reprimir migrantes mas também não quer que eles fiquem, os governadores e prefeitos começam a empurrá-los para frente, disponibilizando transportes e afastando-os das regiões turísticas. Nesse momento, conseguimos alguns tipos de apoio.
Depois, o governo López Obrador muda de posição por pressão do governo Trump e começa a ter uma política anti-imigração que não pegamos na fronteira, mas pegamos no caminho. A cena dos policiais proibindo pegar carona depois da Cidade do México, da Karen discutindo, tem a ver com isso.
Sobre o desfecho da caravana: novamente vocês escolhem registrar momentos de convivência, de afeto, de coletivo, de reorganização do cotidiano, ainda que num contexto de frustrações sobre a sonhada vida nova que não chegou. Por quê?
Tem muito a ver com a nossa perspectiva sobre o problema. Era claro pra gente que o assunto é sempre tratado como “esses imigrantes invasores que vêm aqui roubar o nosso sonho americano”. Inclusive temos a impressão de que o filme não teve uma recepção tão calorosa nos EUA porque no fundo ele frustra essa expectativa dessa visão clichê do perfil do migrante. Nossa visão sempre foi muito crítica sobre isso. Eles não estão indo roubar o sonho de vocês, acontece que os EUA é diretamente responsável pela pobreza, pelo caos social, político e jurídico dos países deles. Em um Estado ineficiente, corrompido, miliciano, onde o sistema judicial não funciona, como uma mulher vai ter alguma proteção adequada em relação a violência de gênero?
Então eles não estão indo roubar sonho americano de ninguém, eles estão fugindo de situações extremas de vulnerabilidade, provocadas pelos EUA e das quais ele se beneficia, sem querer compartilhar os louros da intervenção.
Nesse sentido, o México é um país mais rico, mais aberto à diversidade. E Tijuana, especificamente, é uma cidade que tem essa conexão com a questão da migração, que fica entre lugares. Um lugar complexo, uma cidade que é dura mas ao mesmo tempo acolhedora. O Irving é um mexicano que não tem o sonho de ir para os EUA, mas que não acha adequado que um país queira impedir pessoas de irem. Então ele ajuda os migrantes na travessia e também propicia que as pessoas fiquem ali e encontrem uma comunidade. Acho que a experiência da Lilian é isso. Ele a ajuda a colocar as crianças na escola… ela sai de uma condição mais precária na Guatemala e encontra uma situação que não é a de um sonho americano mas é mais possível, com uma comunidade, um acolhimento.
O filme tem esse sabor agridoce para mostrar que migrar é sobre se construir no caminho, construir outras perspectivas.
Sabemos que distribuir um filme independente no Brasil não é tarefa fácil, especialmente no caso de um documentário, e ainda por cima um documentário sobre América Central, lugar sobre o qual nunca falamos. Você poderia comentar um pouco sobre o processo de conseguir levar um filme como "Lo Que Queda en el Camino" aos cinemas?
O filme rodou por diferentes festivais, ganhou diferentes prêmios na Alemanha, na Espanha, na Colômbia, mas teve uma resistência muito grande pra entrar aqui no Brasil, que é um dos países coprodutores, muito diferente do que aconteceu na Alemanha, onde ele passou em diversos festivais. Aqui ele passou em dois festivais, no de Santos e no de Marília. Essa parte toda da distribuição foi muito atrasada, então acho que isso diz muito sobre a nossa falta de interesse e de identificação com a América Latina, ainda mais com a América Central, que aí tem uma distância maior, uma certa diferença de temas, por ser uma zona de influência mais direta dos EUA e ter uma influência mais regional do México. Enquanto somos uma potência regional na América do Sul, o México é a potência regional na América Central. Isso nos chama atenção sobre a falta de perspectiva de unidade latino-americana. Acho que cai num lugar de não ser um tema nacional, dentro da diversidade de temas que temos aqui no Brasil, mas também acho que o interesse dentro da perspectiva de cinema internacional olha muito para fora pouco para os nossos vizinhos.
CRÍTICA: A FILHA DO PESCADOR
Também acaba de ser lançado nos cinemas “A Filha do Pescador” (“La Estrategia del Mero”, no original), uma coprodução entre Brasil, Colômbia, Porto Rico e República Dominicana.
Em sua estreia como diretor de longas-metragens, o colombiano Edgar De Luque Jácome apresenta um drama queer que é bastante formal do ponto de vista narrativo, mas que chama atenção pela manipulação dos espaços, pela dedicação emocional de seus atores principais e por sua decisão de lidar com destinos e afetos que estão há muito condenados.
Na trama, Samuel (Roamir Pineda) é o último dos pescadores a continuar executando a técnica do mergulho livre para pescar enormes garoupas (meros) no mar do Caribe colombiano. Ele é respeitado por seus feitos enquanto pescador e mergulhador, mas também é conhecido por seu comportamento rude, ensimesmado.
Há mais de 15 anos o homem vive isolado em sua ilha, amargando a partida da esposa e do filho Samuelito enquanto mantém a rotina de pesca e sua relação de profunda intimidade com o mar. Essa rotina sai dos eixos quando o filho um dia retorna, agora uma mulher transgênero chamada Priscila (Nathalia Rincón).
Priscila, que fez sua vida junto à comunidade transgênero e travesti de Santa Marta, está em fuga, parece estar devendo dinheiro a paramilitares e por isso recorre à cabana isolada do pai para se esconder. Mas Samuel a rejeita, despreza sua identidade, ignora sua história.
Nesse contexto, o mar aparece como mediador. O mesmo mar que é tão íntimo para Samuel, que um dia levou sua família para longe e que agora trouxe de volta sua filha, obrigando-os a conviver.
Em “A Filha do Pescador”, a retomada da relação pai e filha é melancólica, resignada. Porque talvez não chegue a ser uma retomada, de fato. São personagens com destinos traçados, que não têm muito a dizer um ao outro. Suas realidades nunca chegam perto de mudar. O que o diretor parece nos propor é que acompanhemos uma última oportunidade que essas pessoas têm de recordarem um passado que viveram em comum, onde existia afeto e algum respeito.
Um filme que coloca frente a frente em seu microcosmo de relação familiar deteriorada, retratando dilemas da heteronormatividade, do conservadorismo e das violências de gênero, duas comunidades que foram deslocadas das zonas turísticas e históricas de Santa Marta: a trans e a de pescadores.
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