ERA UMA VEZ NA AMÉRICA LATINA #38
ENTREVISTA: “Com um coração filosófico muito forte, Mujica nos conta coisas que sabemos mas esquecemos no dia a dia”, diz Pablo Trobo, diretor de "Os Sonhos de Pepe"
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OS SONHOS DE PEPE
Em seu primeiro longa-metragem, o uruguaio Pablo Trobo acompanha o ex-presidente uruguaio José Alberto "Pepe" Mujica Cordano, hoje com 89 anos, em algumas de suas viagens pelo mundo, registrando fragmentos de seus discursos e pensamentos.
Desse material nasce o documentário “Os Sonhos de Pepe” (“Los Sueños de Pepe – Movimiento 2052”), primeiro filme de uma trilogia dirigida por Trobo, que conheceu Mujica ainda como cinegrafista em sua campanha presidencial.
Aqui, o diretor tem como recorte temático específico o contexto global de colapso climático e esgotamento de recursos,. Por isso, as reflexões de Mujica giram em torno do valor do tempo, da questão das jornadas de trabalho, do consumismo, da relação homem e natureza, dos afetos…
Permanece por toda a obra, no entanto, a atmosfera mítica e utópica que circunda a figura do homem que como guerrilheiro lutou ativamente contra a ditadura militar de seu país, passou 12 anos encarcerado, período em que aprendeu que “as formigas gritam”, e depois, em 2010, assumiu o cargo de Presidente da República. Sempre mantendo um mesmo estilo de vida e atuando como um defensor inalienável da justiça social e da democracia, Pepe Mujica ganhou projeção internacional.
“Os Sonhos de Pepe” estreou nos cinemas em 5 de dezembro, com distribuição da Pandora Filmes.
O diretor Pablo Trobo concedeu uma entrevista ao Era Uma Vez na América Latina. Acompanhe a seguir
Vanessa Panerari: Pablo, você primeiro conhece Mujica como cinegrafista em sua campanha presidencial e depois decide se dedicar a uma trilogia de documentários sobre os pensamentos dele. O que te fez querer se lançar nessa outra linguagem audiovisual, a do cinema, para retratar o ex-presidente?
Pablo Trobo: O que me interessou em fazer um filme do Pepe foi, antes de tudo, a importância que lhe atribuí desde o início, em 2009, quando percebi que por trás do seu discurso político havia um discurso muito mais importante que não é de direita nem de esquerda, é sobre toda a humanidade. Com um coração filosófico muito forte, ele nos conta coisas que sabemos mas esquecemos no dia a dia. As reflexões de Pepe são as de um ser humano preocupado com os destinos do planeta e todos nós enquanto espécie. E essas preocupações também são minhas, por isso decidi fazer um filme focado em seu pensamento e não tanto em sua vida. Escolhi o cinema porque é um ambiente em que me sinto confortável como meio de expressão... Embora este seja o meu primeiro filme importante, trabalhei nisso toda a minha vida.
VP: Quais são os desafios de retratar alguém já tão retratado?
PT: Os desafios foram muitos. A vantagem é que fui um dos primeiros a perceber que Mujica seria o político mais importante do Uruguai nesse tempo em que estou vivo. Então comecei a filmar a partir daquele exato momento, antes de que ele se tornasse mundialmente conhecido. Como seus pensamentos sempre me interessam antes de qualquer outra coisa, sabia que era o que eu queria capturar, e não sua biografia. Desse ponto de vista foi fácil, e é o único documentário até agora que tem essa abordagem.
VP: Você é o responsável pela direção, pela produção, pela montagem e pela fotografia do filme. Quais as vantagens e desvantagens de realizar um documentário assim praticamente sozinho?
PT: A vantagem é que não perco tempo explicando para muita gente o que precisa ser feito ou qual é minha visão artística. E a desvantagem são os encontros entre produtor e diretor, que sempre querem coisas diferentes. Muitas ideias não puderam ser desenvolvidas não por falta de intenção, mas por falta de orçamento.
VP: Adentrando a atmosfera dos sonhos, da utopia, dos pensamentos, seu filme mantém muito da aura quase mitológica que envolve a figura de Mujica. Para você, por que José Mujica atingiu um patamar tão célebre, a nível mundial, no imaginário popular?
PT: Porque ele é uma exceção à regra. Num mundo tão habituado a tratar presidentes e ministros como reis, e com uma classe política que perde credibilidade, Mujica se torna um exemplo já que vive como pensa. Isso lhe dá autoridade moral para falar.
VP: No filme, você recorre a elementos visuais até um pouco surreais/fantásticos para ilustrar o realismo material das experiências de Mujica. Queria que você comentasse um pouco sobre essa decisão narrativa.
PT: Sempre soube que não queria fazer um documentário normal, um documentário de “cabeças falantes”. Meu estilo sempre foi diferente, e penso que esse filme marca um antes e um depois na linguagem documental. Estamos habituados a documentários mais lineares, e eu preferi fazer algo mais artístico. Mais solto, mais original. Não programado por algoritmos. Algo mais humano. É um filme artesanal, cuja costura à mão me tomou tempo. E sei que o filme, pela sua estrutura e pela sua forma, está sendo amado e odiado. Arrisquei ao escolher esse caminho, mas estou tranquilo e satisfeito com o resultado. É um filme que arrisca as formas de um documentário com momentos que podem ser chamados de surreais. Mas vim para fazer filmes e, como o paguei com o meu tempo e o meu dinheiro, pude realizar um trabalho artístico que acredito que apoia a mensagem de Pepe. Em outras palavras, não se trata apenas de um delírio artístico, é arte que sustenta uma ideia filosófica.
VP: Pessoalmente, como você descreveria ter convivido tão de perto com Mujica? Como foi estar em contato tanto com o lado da utopia que contagia tanta gente quanto com o homem comum e mortal de quase 90 anos que sabe que nosso tempo e nosso planeta estão chegando ao limite?
PT: Foi uma aventura e agradeço à vida por ter me colocado nesse caminho e me permitido registrar parte da vida de alguém que será um ícone de nossas gerações. É uma honra da vida e uma alegria, para tirar a solenidade que a palavra honra implica. Mujica é um homem simples mas profundamente culto, uma biblioteca com pernas. E é um avô carinhoso.
VP: O que podemos esperar dos próximos filmes da trilogia?
PT: Um deles será sobre a integração latino-americana. E o outro será mais sobre a história pessoal dele, uma biografia mais pessoal da história dele.
TAMBÉM NOS CINEMAS
EMPATE
Chegou aos cinemas em 5 de dezembro, às vésperas da Semana Chico Mendes, o documentário “Empate”, de Sérgio de Carvalho (diretor de “Noites Alienígenas”, primeiro longa acreano a estrear em circuito comercial por todo o país). Nele, Carvalho procura recuperar a memória e o legado de luta de Chico Mendes, o seringueiro ativista que liderou no Acre dos anos 1970 e 1980 o movimento dos empates (correntes humanas formadas para impedir a destruição da floresta) e foi presidente do sindicato dos trabalhadores rurais de Xapuri, município do interior do estado, acabando assassinado em 1988.
Filmado pós-2016, logo depois do impeachment da presidenta Dilma Rousseff, “Empate” apresenta uma breve contextualização do movimento seringueiro do período Chico Mendes para logo em seguida passar a acompanhar alguns dos homens e mulheres que viveram aqueles dias e que ainda hoje estão ameaçados pelos conflitos por terras.
Isso porque, embora tenha sido criada, em 1990, a Reserva Extrativista Chico Mendes (Resex), uma unidade de conservação federal na Amazônia Legal, as tensões territoriais em Xapuri nunca cessaram.
Nesse sentido, 2016 torna-se um marco importante para a narrativa: pós-impeachment, as mesmas forças que organizam o golpe contra uma presidenta democraticamente eleita passam a se sentir à vontade para investir com maior incisividade contra os arredores da reserva, ameaçando os modos de vida que ali estiveram preservados e posseiros de décadas, aqueles que não tiveram suas terras delimitadas para dentro da reserva.
A partir desse marco, então, o filme se preocupa em registrar as contradições da região, a passagem da boiada, do neopentecostalismo, a maneira como, de forma geral, a cultura agro tem se infiltrado em diferentes esferas da vida da juventude acreana e daqueles que vivem na floresta. Como espinha dorsal desses registros emerge a necessidade de que os seringueiros dos empates se mantenham constantemente em alerta e organizados.
“O longa foi filmado justamente quando se completaram 30 anos [do assassinato de Chico Mendes], em um momento que o Brasil estava passando ali uma turbulência política. Um golpe que levou ao afastamento da presidenta Dilma. E desde sempre a gente queria retratar esses companheiros do Chico, não como pessoas do passado que tiveram uma história, mas como seres agentes políticos também do presente”, explica Carvalho, que desde sua chegada no Acre, há duas décadas, frequenta a Reserva Extrativista Chico Mendes.
“A partir das histórias e memórias desses companheiros que enfrentaram tanta coisa, enfrentaram os latifundiários, enfrentaram um sistema que estava completamente contra eles, a polícia estava contra eles, a política estava contra eles, o poder econômico estava contra eles, e eles existiram, lutaram e avançaram, e a gente vê, assim, nesses personagens do filme, esse chamado à luta, chamado à organização o tempo todo. Por isso, acho que é um filme super atual, que acaba adquirindo um outro contexto quando a gente assiste hoje, e vê tudo que o Brasil passou”, complementa o diretor no material divulgado à imprensa.
Todos os anos, a Semana Chico Mendes é celebrada entre 15 e 22 de dezembro, quando o comitê Chico Mendes realiza no Acre, em Xapuri e na capital Rio Branco, atividades para honrar o legado do seringueiro. As datas coincidem com o data do nascimento e do assassinato de Mendes, que, agora em 2024, completaria 80 anos. Neste ano, o evento contará com uma exibição pública de “Empate”.
MALU
Inspirado livremente na vida de sua mãe, a atriz paulista Malu Rocha, Pedro Freire se desprende de juízos de valor para retratar, em seu primeiro longa-metragem, a intensidade dos conflitos geracionais experienciados por três mulheres de uma mesma família.
Na trama, Malu (Yara Novaes) é uma atriz desempregada de meia-idade que vive numa casa simples na periferia do Rio de Janeiro com sua mãe, a religiosa e conservadora dona Lili (Juliana Carneiro da Cunha), e com Tibira (Átila Bee), um amigo artista que ocupa um cômodo separado no quintal da casa.
O sonho de Malu é construir, num segundo andar dessa residência, um pequeno centro cultural para a comunidade. Mas, quando sua filha, Joana (Carol Duarte), retorna do exterior para passar uns dias com a mãe e a avó, antes de iniciar sua própria jornada de atriz em São Paulo, Malu se vê confrontada por frustrações pessoais e profissionais.
Sempre um tanto dissociada de sua realidade presente e decadente, Malu ora se apega com afinco ao passado, aos anos gloriosos de sua carreira artística e de seu ativismo político, ora parece obcecada pelo futuro de um centro cultural que nunca sai do campo das ideias. Ela é constantemente chamada de volta à realidade, no entanto, pelas preocupações de Joana e pelo convívio conturbado com Dona Lili.
Sem pudor ao cutucar as feridas purulentas dessas relações familiares, Freire desenvolve uma narrativa que definitivamente não se esquiva das contradições. E talvez por isso a trama nos atravesse de maneira tão familiar, nos pareça tão natural. Há drama, humor, absurdo e cotidiano sob aquele teto. Há afeto, rancor, intolerância, resiliência, melancolia, violência, cuidado, doçura, cansaço e amargura. Tudo na mesma balança, num frequente sobe e desce de pratinhos. Há típicas crises de convivência, embates de visões de mundo, mulheres mães, filhas e avós condicionadas por supostas obrigações, marcadas por histórias que são muito íntimas mas que também as inserem num contexto mais amplo, social.
Optando pelo caminho difícil do que é incômodo, do que não tem saída, da zona cinzenta de gente que é gente e, portanto, complicada, “Malu” se consagra como um dos filmes mais surpreendentes e envolventes de 2024. Yara Novaes, Juliana Carneiro da Cunha e Carol Duarte juntas em cena são fantásticas. Lançado em 31/10. Ainda em cartaz em algumas cidades.
SALÃO DE BAILE: THIS IS BALLROOM
Com uma narrativa arrojada, estruturada a partir de entrevistas, mas também de encenações e principalmente do desenrolar de um baile organizado especialmente para o filme, “Salão de Baile”, das diretoras Juru e Vitã, apresenta ao espectador o universo da cena ballroom do Rio de Janeiro. Importada da contracultura nova-iorquina dos anos 1970, a ballroom chega ao Brasil com um glossário de termos próprios, performances próprias, contradições e nuances próprias, tornando-se espaço de expressão artística e local de pertencimento e resistência política para uma comunidade protagonizada por pessoas pretas e LGBTQIAPN+.
“A ballroom é um lugar de potencialização desses corpos dissidentes, um espaço criado por e para pessoas trans e pretas, especialmente, poderem resistir às opressões e celebrar suas existências”, explica Juru no material divulgado à imprensa.
Um documentário enérgico, criativo e imperdível, feito sobre e por coletivos ballroom. Um filme que não se esquiva de registrar o melhor e o pior do movimento a que se refere. Lançado em 5/12.
A OUTRA FORMA
Fruto de uma coprodução entre Brasil e Colômbia, a animação “A Outra Forma” (“La Otra Forma”, no original), dirigida e escrita por Diego Felipe Guzman, é ambientada num mundo futurista e distópico, onde absolutamente tudo é forjado e delimitado a partir de formatos geométricos e suas linhas rigorosamente retas.
Nesse universo de ficção científica, onde não existem diálogos, um homem em dilema existencial tenta desesperadamente se encaixar no formato que lhe foi designado. Isso porque todas as pessoas encaixadas ganham passagem para um paraíso artificial quadrado criado na superfície da Lua. O problema é que, para se tornar quadrado, o protagonista precisa suprimir a essência de sua verdadeira forma, submetendo-se, sem questionamentos, a brutais dispositivos, máquinas e cirurgias de “quadratização”.
Ainda que um pouco prejudicado pela repetição de ideias e por certa falta de clareza a respeito das reviravoltas da jornada do protagonista e de algumas das regras de seu mundo, “A Outra Forma” surpreende por seu empenho visual na criação 2D desse mundo inflexível, sorumbático e até meio fabular - algo que talvez faça lembrar produções Studio Ghibli. Surpreende também pela obviedade não tão óbvia de suas mensagens sobre padrões, aparências, alienação. Um exercício criativo muito interessante de acompanhar, especialmente por suas pitadas desconcertantes de comédia e angustiantes de horror corporal. Lançado em 12/12.
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