ERA UMA VEZ NA AMÉRICA LATINA #12
"Vicenta": uma animação argentina sobre aborto I "Rua Guaicurus" estreia nos cinemas I "Medusa" nos EUA I México, maquilaria dos streamings
Junho de 2022. O The Intercept Brasil publica uma reportagem sobre o caso de uma criança de 11 anos, grávida após ser vítima de um estupro, que estava sendo mantida pela justiça de Santa Catarina em um abrigo, afastada da família e impedida de fazer o aborto legal a que tinha direito. Depois de publicada a reportagem, Joana Ribeiro Zimmer ficou conhecida como a juíza que decidiu usar sua própria régua moral para decidir sobre o corpo de outra pessoa. A juíza que achou natural perguntar a uma criança, já machucada e fragilizada, se ela aguentaria ficar grávida “mais um pouquinho”, se ela gostaria de escolher um nome para o feto, se o estuprador concordaria com uma entrega para a adoção.
Os detalhes do caso dessa garota, alvo por incontáveis vezes da perversidade de uma sociedade (violadores, juízes, profissionais da saúde, opinião pública) que violenta e controla obsessivamente os corpos de pessoas com útero - principalmente aqueles já vulneráveis social e economicamente - ,e que finge se importar com fetos para ter a desculpa perfeita para torturar quem os gesta, me fizeram lembrar de um filme argentino. Um documentário em animação, visto na edição 2021 do Festival É Tudo Verdade. O longa, intitulado Vicenta, conta a história de uma mãe, pobre e analfabeta, que em 2006, quando a descriminalização do aborto na Argentina ainda era uma conquista distante, precisou enfrentar todo tipo de situações absurdas para que sua filha, uma adolescente com deficiência intelectual, vítima de um estupro, tivesse seu direto ao aborto respeitado.
Dirigido por Darío Doria, o filme recupera, através de arquivos jornalísticos e dos processos judiciais, a jornada dessas duas mulheres, mãe e filha, contra a burocracia estatal. No fim, Vicenta Avendaño não conseguiu a interrupção legal da gravidez de sua filha, mas em 2014 conseguiu que a ONU condenasse o Estado argentino por sua conduta no caso.
Doria escolheu documentar essa história em animação, usando bonecos inanimados, mas muito expressivos, que são envolvidos por uma narração em off na voz da cantora Liliana Herrero. Assim, acompanhamos os encontros de Vicenta com médicos, juízes, assistentes sociais, imprensa e outras mulheres - essas, sim, dispostas a ajudá-la. Acompanhamos o que foi noticiado e também a parte da história que não foi midiática.
“Eu queria que o espectador estivesse com ela, que sentisse essas viagens eternas, essa demora eterna da justiça em definir algo enquanto a gravidez avançava”, conta o diretor ao portal Página 12.
Vicenta é o registro de um caso de 2006. Muitos anos de luta e reinvindicações se passaram desde então, e em 2020, pouco depois de o filme começar a circular por festivais, o aborto legal, seguro e gratuito se tornou lei na Argentina. Um direito assegurado a qualquer pessoa que decida interromper uma gestação durante as suas primeiras 14 semanas, vítimas de violência ou não. Aqui no Brasil, entretanto, aqueles que deveriam acolher vítimas como a garota de 11 anos, fazendo valer a legislação que temos, ainda decidem por conta própria transformar em lei a manutenção do sofrimento.
O longa não tem previsão de estreia comercial no Brasil.
NOS CINEMAS
RUA GUAICURUS
Lançado nos cinemas em 14 de julho, distribuído pela Embaúba Filmes, Rua Guaicurus se vale da combinação entre o documental e a encenação para revelar o universo da prostituição no local que dá título ao longa.
A rua Guaicurus é uma das maiores zonas de prostituição do Brasil, localizada no centro da cidade de Belo Horizonte, desde os anos 50. Atualmente funcionam mais de 25 hotéis na região, com aproximadamente três mil trabalhadoras do sexo. Nesse enorme complexo, o filme revela um cotidiano pouco conhecido, por meio de situações que surgem das relações entre suas personagens.
PARA ASSISTIR EM CASA
GLOBOPLAY
Medida Provisória
Depois de fazer números expressivos de bilheteria na retomada dos cinemas pós-pandemia (ler edição #10 desta newsletter), Medida Provisória chega ao Globoplay. Dirigido por Lázaro Ramos, o filme fala de um Brasil distópico onde o Congresso Nacional aprova uma medida provisória que determina que cidadãos negros devem se mudar para a África, sob o argumento da reparação histórica, da importância da retomada das origens. Falácias. Na prática, o Brasil do futuro estaria apenas tentando se livrar de sua população preta.
Turma da Mônica
Vem recebendo inúmeros elogios a série original Globoplay da Turma da Mônica. Na trama, Mônica, Magali, Cascão, Cebolinha e seus amigos estão deixando a infância e chegando à adolescência. Enquanto enfrentam os dilemas dessa fase de transição, um crime deve ser investigado no bairro do Limoeiro.
HBO MAX
María Marta: O Assassinato no Country Clube
Em 27 de outubro de 2002, María Marta García Belsunce foi encontrada sem vida por seu marido no banheiro de sua casa, em um condomínio fechado de Buenos Aires. Mas, o que a princípio parecia um acidente doméstico acabou se convertendo num dos crimes de maior repercussão da Argentina.
Recriando ficcionalmente o caso de assassinato, “María Marta” narra o que aconteceu antes, durante e depois do crime que deixou em polvorosa os meios de comunicação, a opinião pública e o sistema judicial.
A série, lançada em 17 de julho, em menos de uma semana se tornou a produção mais vista da HBO Max Latinoamérica. Em Infobae
MUBI
Terminal Norte
Estreou em 20 de julho, no catálogo da MUBI Brasil, Terminal Norte, o mais recente lançamento da renomada cineasta argentina Lucrecia Martel (O Pântano, 2001). Em formato de média-metragem documental, o filme foi rodado em 2020, no início da pandemia, quando a diretora volta para Salta, sua cidade natal no norte da Argentina, com sua companheira, a cantora Julieta Laso.
Em Salta, considerada uma região bastante conservadora do país, Martel acompanha os ensaios de Laso para um show cancelado e suas interações com mulheres artistas locais.
SESC DIGITAL
Juan dos Mortos
Marco do cinema cubano contemporâneo independente, Juan dos Mortos é uma comédia de zumbis dirigida por Alejandro Brugués. Na trama, Havana é tomada por uma epidemia que transforma seus habitantes em zumbis comedores de carne humana.
Em meio ao caos, um homem comum, até então sem rumo na vida, decide montar um negócio: sob o slogan "matamos seus seres queridos", Juan Díaz Villegas fica de plantão 24 horas por dia para exterminar mortos-vivos para seus clientes.
Na época do lançamento do filme, Brugués comentou sobre o forte subtexto satírico de seu filme e os alvos de sua crítica: “Os cubanos têm três formas de reagir diante dos problemas: ficar de braços cruzados e não fazer nada, abrir um negócio e fazer dinheiro com ele ou fugir”. Em RTVE
O Abraço da Serpente
Indicado ao Oscar 2016 de Melhor Filme Internacional, O Abraço da Serpente projetou a carreira do cineasta colombiano Ciro Guerra a nível mundial com a história de Karamakate (Nilbio Torres/Antonio Bolívar), o último sobrevivente de seu povo. Em seus melhores dias, o protagonista foi considerado um grande xamã amazônico. Os muitos anos de solidão e isolamento, porém, o transformaram em “chullachaqui”, uma casca vazia, sem memória e emoções.
O exílio de Karamakate é perturbado com a chegada de um etnobotânico branco e estadunidense que, seguindo a trilha deixada por um antigo conhecido de Karamakate, está à procura da rara yakruna, planta capaz de curar e ensinar a sonhar.
Crítica completa do filme aqui
Assista ao filme gratuitamente aqui
STAR+
Santa Evita
Eva Perón morreu em 1952, aos 33 anos, por causa de um câncer em estado avançado no útero. Em sua curta vida, passou de criança pobre a atriz de radionovelas. Tornou-se primeira-dama da Argentina, foi amada pelos mais pobres e, mesmo depois de morta, protagonizou uma das histórias mais insólitas do país: em 1955, anos depois de sua morte e meses depois de instaurado o regime militar que derrubou o governo de seu marido, Juan Domingo Perón, Evita teve seu cadáver roubado e desaparecido.
Para os militares e a direita, os restos mortais de Eva Perón representavam uma lembrança incômoda da popularidade do regime peronista. Mas o desaparecimento do caixão e do cadáver não fez cair no esquecimento a ex-primeira-dama, que acabou convertendo-se em símbolo de resistência ao novo regime militar que comandava o país.
A odisseia enfrentada por esse corpo, desaparecido por quase duas décadas, agora é recontada em Santa Evita, uma minissérie de ficção original Star+ baseada nos eventos reais e fictícios narrados no romance homônimo do escritor argentino Tomás Eloy Martínez. Disponível desde 26 de julho na plataforma, data do aniversário de 70 anos da morte de Eva Perón, Santa Evita tem direção do colombiano Rodrigo García, roteiro de Marcela Guerty e Pamela Rementería e Natalia Oreiro como protagonista.
Em entrevista ao Estadão, a atriz comentou seu papel: “É uma mulher poderosa que despertava paixão, ódio, amor, mesmo morta. Na verdade, ela lhes dava muito medo. Porque ter medo de um cadáver é algo inexplicável”. O cineasta Rodrigo García também ressaltou o fato de essa ser uma história sobre o corpo de uma mulher estar em poder de homens que decidem seu destino. Matéria completa aqui
Santa Evita: o que é real e o que é ficção na série?
Yo Nena, Yo Princesa
Dirigido por Federico Palazzo, o argentino Yo Nena, Yo Princesa ficcionaliza a história da primeira menina argentina trans a conseguir a mudança de gênero em seu documento de identidade.
O filme é baseado no livro homônimo escrito pela mãe dessa menina, Gabriela Mansilla, que teve gêmeos designados meninos no nascimento, mas que muito cedo precisou exercitar a coragem e a escuta para perceber a angústia que uma das crianças vivia por não se identificar com o gênero que lhe foi imposto.
NOTÍCIAS
MEDUSA NOS EUA
O thriller brasileiro Medusa, dirigido por Anita Rocha da Silveira (Mate‑me Por Favor, 2015) e ainda inédito no circuito comercial nacional, estreou em 29 de julho no circuito estadunidense.
Protagonizado por Mari Oliveira, a produção fala do extremismo religioso brasileiro a partir de um grupo de jovens que se juntam para bater em outras mulheres, aquelas consideradas impuras, as que desafiam os conservadorismos locais.
"Fiquei pensando nessa necessidade de uma mulher controlar a outra e no machismo estrutural, de como isso está introjetado em nós", disse a diretora ao portal Terra. "O principal machismo que sofri foi de uma mulher, o que me marcou muito. Acho que é um assunto que precisa ser debatido. Essa desconstrução tem de vir de todo o mundo."
CINEMA MEXICANO, “MAQUILADOR DE STREAMING"
Sem investimentos do Governo Federal, o cinema mexicano corre o risco de converter-se em “maquiladora” para as produtoras estrangeiras e plataformas de conteúdo online, advertiu à agência EFE o ator hispano-mexicano Daniel Giménez Cacho.
O artista fez tais declarações depois de o Governo Mexicano, em 2021, cortar fundos destinados à produção de filmes e aproximadamente 2 milhões de dólares do Instituto Mexicano de Cinematografia, órgão regulador do cinema no país.
As maquiladoras são empresas que importam peças e componentes de suas matrizes estrangeiras para que os produtos sejam montados em solo mexicano, por trabalhadores que ganham salários inferiores aos daqueles que trabalham nas matrizes. Esses produtos, cuja feitura tem como característica central a segmentação, são montados e depois exportados, destinados aos mercados internacionais.
Essas empresas, vinculadas ao processo de internacionalização da produção, promovida por companhias transnacionais, nasceram tendo como um de seus principais objetivos reter parte da força de trabalho mexicana que migrava para os EUA.
Daí a comparação do formato de produção das maquiladoras com a função que o cinema mexicano vem exercendo: “Elas [empresas estrangeiras] têm o controle das plataformas, de nos dizer o que o público quer e o que devemos fazer. As pessoas só querem o que conhecem, e vamos começar a nos repetir e morrer. Esse é o futuro quando tudo se torna homogêneo e por isso é tão importante a diversidade, porque é o que faz com que nos renovemos e cresçamos”, apontou Giménez Cacho.
“Há cada vez menos produção [nacional], então nos transformamos em maquiladoras. Já não precisamos cruzar a fronteira para trabalhar, as plataformas é que chegam com seus critérios e algoritmos para que nós façamos seus conteúdos”.
MARTE UM
Depois de sua estreia internacional no Festival de Sundance, em janeiro, Marte Um, de Gabriel Martins, estreia no Brasil. O longa, que já foi exibido em 25 Festivais, foi selecionado para mostra competitiva do Festival de Gramado, que acontece entre 12 e 20 de agosto, e depois chegará em circuito comercial, com distribuição da Embaúba Filmes, no dia 25 de agosto. A produção é assinada pela Filmes de Plástico, e é coproduzida pelo Canal Brasil. Marte Um é o segundo longa do cineasta (o primeiro solo, sem a parceria de Maurílio Martins, com quem fez No Coração do Mundo - entrevista com os diretores do filme aqui).
O filme traz o cotidiano de uma família periférica, nos últimos meses de 2018, pouco depois das eleições presidenciais. O garoto Deivid (Cícero Lucas), o caçula da família Martins, sonha em ser astrofísico, e participar de uma missão que em 2030 irá colonizar o planeta vermelho. Morando na periferia de um grande centro urbano, não há muitas chances para isso, mas mesmo assim, ele não desiste. Passa horas assistindo vídeos e palestras sobre astronomia na internet.
O pai, Wellington (Carlos Francisco, de Bacurau), é porteiro em um prédio de elite, e há um bom tempo está sem beber, uma informação que compartilha com orgulho em sessões do AA. Tércia (Rejane Faria, da série Segunda Chamada) é a matriarca que, depois de um incidente envolvendo uma pegadinha de televisão, acredita que está sofrendo de uma maldição. Por fim, a filha mais velha é Eunice (Camilla Damião), que pretende se mudar para um apartamento com sua namorada (Ana Hilário), mas não tem coragem de contar aos pais.
Produtor do filme, Thiago Macêdo Correia, da Filmes de Plástico, lembra que Gabriel o procurou com a ideia para Marte Um quando o país ainda estava sob o comando de Dilma Rousseff, um período de prosperidade, e incentivo e investimentos na cultura. “O filme foi produzido graças a um fundo público de 2016 voltado para diretores negros e narrativas de temática negra com o intuito de levar às telas cineastas de grupos minoritários. Obviamente, esse fundo não existe mais. Rodamos o longa em outubro de 2018, durante as eleições, o que acabou influenciando também a narrativa. Não tínhamos ideia do que viria depois”.