ERA UMA VEZ NA AMÉRICA LATINA #7
Estes são alguns dos lançamentos latino-americanos que se destacaram nas plataformas de streaming em 2021
Caminhando para o terceiro ano de pandemia, o audiovisual latino-americano segue sofrendo as consequências de uma crise sanitária que não tem data para acabar. Por um lado, 2021 foi o ano em que produções foram retomadas e as salas de cinema, gradualmente, voltaram às suas atividades, atraindo principalmente o público mais jovem, agora já vacinado. Por outro, esse período de retomada tem sido bastante contraditório.
Chamou atenção, por exemplo, um levantamento feito pela Ancine que revelou que filmes brasileiros perderam mais de 90% de público e renda nos cinemas em 2021 comparado a 2020 (o ano em que as salas fecharam as portas), embora a renda com bilheterias tenha aumentado 34,8%.
Em 2020, 189 filmes brasileiros tiveram 9 milhões de espectadores e R$ 142 milhões de renda. Em 2021, 209 filmes tiveram 700 mil espectadores e R$ 11 milhões de renda. A maior bilheteria nacional em 2021, Marighella, de Wagner Moura, teve 16 vezes menos espectadores do que “Homem-Aranha: Sem volta para casa”, líder de bilheteria no país. Números nada surpreendentes, já que “Homem-Aranha” estreou em 2722 salas, e Marighella em apenas 336. Um expressivo reflexo da falta de políticas públicas (como a cota de tela) que assegurem a circulação de nossas obras.
E a situação não foi diferente no restante da América Latina. Argentina e México, os dois maiores produtores de cinema da região (ao lado do Brasil), também viram seus parques exibidores serem saturados por sessões da Marvel. O México inclusive foi listado como terceiro país do mundo onde o filme estadunidense mais fez bilheteria. Numa realidade ainda pandêmica, as contradições do cinema latino-americano se evidenciam ganhando rosto de Homem-Aranha.
Nesse cenário, o streaming, mesmo que também não regularizado no Brasil, segue sendo uma via significativa de escoamento das produções latinas, porque dispõe de espaço em seus catálogos (diferente das limitações de uma programação de sala de cinema) e porque é opção acessível para aqueles que ainda evitam aglomerar.
Posto tudo isso, achei indispensável listar algumas produções latinas (filmes e séries) que foram importantes em 2021, que estão disponíveis no streaming e que não merecem passar despercebidas.
MUBI
Menarca
Dirigido pela cineasta paulistana Lillah Halla, esse curta-metragem fantástico, ambientado numa comunidade ribeirinha, ressignifica o mito da vagina dentada: aqui, em vez de ser uma ameaça para os homens, algo a ser dominado, o mito aparece como fonte de empoderamento para as mulheres.
Na trama, duas amigas que estão entrando na adolescência (daí a alusão do título à primeira menstruação) lidam com a necessidade de fazer malabarismos para se esquivar de violências de gênero iminentes. Mas então, quando uma criatura estranha é capturada pelas redes dos pescadores locais, as personagens acabam diante de um estímulo de entendimento e coragem.
O curta conta com trilha sonora de Karina Buhr e Zé Nigro.
Los Huesos
Realizado no ano em que o povo chileno foi para as ruas por uma Constituinte que finalmente permitisse deixar para trás as heranças legais da ditadura militar e lançado comercialmente no ano em que o Chile decidiu negar a extrema-direita nas urnas, Los Huesos se apresenta como uma metáfora de horror sobre os processos políticos e sociais que estão moldando a história recente do país.
Então, no filme, um curta-metragem de animação em stop-motion dirigido por Cristóbal León e Joaquín Cociña (A Casa Lobo, 2018), a protagonista coloca em ação uma cerimônia ritualística de rompimento com o passado.
Lina from Lima
Dirigido por María Paz González e protagonizado pela renomada atriz peruana Magaly Solier, Lina de Lima conta a história de uma peruana que migrou para Santiago e trabalha como empregada doméstica para uma família endinheirada. Todo fim de ano, Lina volta para casa para visitar o filho que ficou para trás. Dessa vez, porém, o garoto, agora um adolescente, parece não estar esperando pela mãe.
Com um recorte genuíno sobre a imigração de mulheres entre países da própria América Latina, o filme se destaca por seu formato de comédia musical.
Portuñol
Focando na linguagem e na comunicação, nos significados do encontro entre o espanhol, o português e até o guarani nas fronteiras do Brasil, Thais Fernandes realiza um documentário que fala de diversidade sob a perspectiva da riqueza das conexões interpessoais e territoriais.
Assim, do “portuñol” que nasce entre os fluxos de pessoas nos limites da região é feito um filme sobre intersecções.
NETFLIX
A Última Floresta
Dividindo o roteiro com o cineasta Luiz Bolognesi, o xamã Yanomami Davi Kopenawa compartilha com o espectador, a partir da mitologia de seu povo, os desafios de tentar manter as tradições e o modo de vida de uma comunidade que vive vulnerável às doenças, às violências e às destruições de território provocadas pela exploração garimpeira.
Vencedor do prêmio do público da mostra Panorama, do festival de cinema de Berlim 2021.
As Três Mortes de Marisela
Vencedor do prêmio Ariel de melhor documentário, As Três Mortes de Marisela tem um formato bastante tradicional de documentário sobre crimes reais e se destaca pela complexidade de sua abordagem sobre o feminicídio no México. O título se refere à trajetória da ativista Marisela Escobedo, uma mãe que teve a filha assassinada e que, desamparada pelas autoridades do Estado, decidiu lutar com as próprias forças por justiça. Uma decisão que desafiou a opinião e o poder público a olharem para as especificidades dos casos de violência de gênero no país, mas que também acabou colocando sua vida em risco.
O Fio Invisível
Dirigido pela peruana Claudia Llosa e adaptado do livro Distância de Resgate, da argentina Samanta Schweblin, O Fio Invisível (Distancia de Rescate, no original) mistura thriller psicológico, horror, sobrenatural e comentário social para tratar do realismo escabroso dos campos do continente e da falibilidade das obsessões maternais.
Crítica completa do filme aqui
GLOBOPLAY
Cabeça de Nêgo
A partir do que há de mais legítimo, transformador e desafiador na revolta, e estreando na direção de um longa-metragem de ficção, Déo Cardoso realiza um filme que fala sobre potências e repressões. Um filme que se dirige especialmente à juventude, mas que é competente em se comunicar com variados tipos de público. Uma obra que procura compreender como a sociedade se relaciona com a escola e denunciar as fissuras de um sistema educacional público precarizado, que mantêm relações íntimas com a burocracia e o autoritarismo.
Entrevista com o diretor de Cabeça de Nêgo aqui
Aruanas
Já com segunda temporada lançada, essa série original Globoplay, criada por Estela Renner e Marcos Nisti, ganha o espectador com um elenco impressionante, uma temática extremamente relevante e um formato cativante.
Na trama, Luiza (Leandra Leal), Natalie (Débora Falabella), Verônica (Taís Araújo) e Clara (Thainá Duarte) são quatro amigas que trabalham na ONG Aruanas. Ao longo dos episódios, então, acompanhamos os desafios de ser ativista ambiental no Brasil (sob a perspectiva do ativismo feminista, principalmente), sem perder de vista as particularidades e os conflitos pessoais de cada uma das protagonistas.
Crítica da primeira temporada de Aruanas aqui
PRIME VIDEO
Manhãs de Setembro
Estreando como atriz, a cantora e compositora Liniker interpreta Cassandra, uma mulher transexual, negra e pobre que durante o dia trabalha como entregadora para um aplicativo e de noite canta canções de sua ídola Vanusa num bar.
Com uma primeira temporada de 5 episódios de 30 minutos, a série tem como eixo o dilema da protagonista, que demorou muito tempo para encontrar o caminho de ser quem é e que vê tudo virar de cabeça para baixo com a chegada de um filho que nunca imaginou existir.
La Jauría
No formato, uma série policial feita nos moldes da maioria das produções do gênero. No conteúdo, um Chile em convulsão. Com roteiro final e direção geral da argentina Lucia Puenzo, La Jauría (“a matilha”, em português) condensa via ficção a atualidade dos conflitos entre o levante feminista que nos últimos anos se espalhou pelo continente contra a violência de gênero e pelo direito ao aborto legal, seguro e gratuito e a ordem conservadora latino-americana, que sempre teve na misoginia um alicerce fundamental da manutenção das estruturas de poder locais.
O desaparecimento da estudante Blanca Ibarra (Antonia Giesen), de 17 anos, serve de estopim de uma narrativa que aborda, em contornos gerais, como funciona a caça às bruxas contemporânea e latino-americana.
HBO Max
Los Lobos
Representante do México nos Prêmios Goya 2022, Los Lobos é um filme sobre imigração, com foco na experiência de adaptação de uma mãe solo e seus dois filhos pequenos num país estranho, sob condições nada acolhedoras. Ela, sendo mãe sem qualquer tipo de ajuda e exaurida por depender de trabalhos precarizados. E os meninos precisando amadurecer rápido demais, usando a imaginação para tornar a solidão dos dias suportável.
Crítica de Los Lobos aqui
YOUTUBE
Hijas de Brujas
Marcando o retorno de Yalitza Aparicio às telas depois de sua estrondosa estreia como atriz no filme Roma (2018), de Alfonso Cuarón, Hijas de Brujas conta a história de Clara, uma mexicana que vive nos EUA e que viaja ao México para apresentar a filha recém-nascida à família.
De volta às origens, Clara participa de um ritual com as mulheres da família para dar boas-vindas à criança, apresentando-a ao animal espiritual que a acompanhará até a sua morte. Dirigido por Faride Schroeder, o curta-metragem de pouco menos de 15 minutos fala de reconexão com as raízes, ancestralidade e união feminina.
Hijas de Brujas foi realizado em função do Halloween para a plataforma Hulu e pode ser visto gratuitamente no YouTube.