ERA UMA VEZ NA AMÉRICA LATINA #20
El Conde e os 50 anos do golpe militar chileno/Brasileira Carolina Markowicz homenageada em Toronto/Temporada de Furacões na Netflix/La Memoria Infinita supera Barbie em sua estreia no Chile
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Lançado pela Netflix na mesma semana em que se cumpriu meio século do golpe militar que destituiu o presidente chileno Salvador Allende, El Conde, de Pablo Larraín, satiriza a figura do general Augusto Pinochet, líder da ditadura civil-militar instaurada no Chile pós-golpe, transformando-o num vampiro decadente e moribundo.
No filme, o vampiro Augusto Pinochet (Jaime Vadell) nasce Claude Pinoche, um menino órfão que serviu como soldado no reinado de Luís XVI e desertou quando o povo se rebelou durante a Revolução Francesa. Pinoche carregou através dos séculos sua obsessão pela cabeça guilhotinada de Maria Antonieta e passou os anos combatendo revoluções populares, até finalmente se estabelecer no Chile com o nome de Augusto Pinochet e ascender ao poder.
Anos mais tarde, o vampiro que muito se orgulha de ter matado “centenas de vermelhos” vive exilado num local ermo, em profunda decadência física e emocional, sentindo-se humilhado por acusações de corrupção (jamais pelas de assasinato). Ele está disposto a finalmente parar de se alimentar de sangue e corações pulsantes e morrer, mas sua decisão provoca uma crise familiar: os filhos querem saber sobre seus direitos à herança, sobre as benesses que o pai acumulou em seus tempos de poder.
Um prólogo conduzido por uma voz feminina que fala em inglês (cuja identidade é revelada somente no final) apresenta a trajetória do vampiro que precisou contentar-se com sangue sul-americano. A partir daí é dado o tom do filme: a ironia como fio condutor se apresenta nos detalhes do texto, na contradição entre a autoimagem criada/performada por cada um daqueles personagens e a realidade infame de suas condições históricas; entre o que eles acreditam representar e o que de fato representam.
É logo de início também que Larraín, diretor e corroteirista, estabelece a atmosfera do longa impregnando a narrativa de contornos góticos, gore e expressionistas. Filmado em preto e branco, El Conde se aventura entre o humor (talvez não o humor que faz rir, mas o que constrange), o horror e o político, manipulando forma e conteúdo para criar seu próprio registro daquele que foi um dos grandes vilões da história chilena - um vilão com capa de general.
Como é comum na filmografia de Larraín (diretor de filmes como “No” e “Neruda”), El Conde não se pretende político, ele nasce essencialmente político. Um filme polêmico, já que a sátira, ácida e contundente, repassa os crimes cometidos durante a ditadura sob o ponto de vista (ironizado) de quem os cometeu.
E embora associar uma ditadura sanguinária a um líder sanguinário possa parecer uma cartada óbvia demais, a metáfora cresce consideravelmente quando Larrain opta por extrapolar o indivíduo Pinochet e relacionar o vampirismo ao experimento ultraliberal implementado no Chile durante a ditadura, num arco que tem a ver com a mãe também vampira do vampiro protagonista.
Para o final, El Conde nos reserva uma sequência de cenas onde representantes do exército, da Igreja, da família tradicional, da política e do empresariado apunhalam-se sem pudor, desmanchando qualquer farsa de nobreza ou decoro. Gente deplorável. Figuras que compõem a lógica do fascismo, suas várias frentes, e que servem aos interesses das bestas que nunca desistem de seguir parasitando. Bestas que raramente são punidas e que não deixam de existir facilmente. Que vivem sempre à espreita, à espera do início de uma nova oportunidade na ciclicidade da história.
Vencedor do prêmio de Melhor Roteiro no Festival de Veneza 2023, El Conde executa com maestria e estilo a complicada missão de trabalhar memórias da ditadura chilena a partir dos delírios de poder dos algozes do período - feito alcançado também pelo curta-metragem de animação Bestia, protagonizado por uma agente da polícia secreta de Pinochet.
PARA ASSISTIR EM CASA
FILMICCA
A CAMAREIRA
Eve (Gabriela Cartol) tem 24 anos e é empregada de um luxuoso hotel da Cidade do México. Mãe solo, ela depende de alguém para cuidar de seu filho enquanto trabalha por extensas jornadas.
Em A Camareira, a diretora Lila Avilés se vale da rotina repetitiva de sua protagonista e do vai e vem de funcionários nos bastidores do hotel para tecer comentários sobre maternidade, educação, classe e trabalho invisível.
A Camareira foi representante do México no Oscar 2020 e o novo filme de Avilés, Tótem, será o representante mexicano no Oscar 2024. Crítica de A Camareira
EAMI
Dirigido pela paraguaia Paz Encina (Hamaca Paraguaya, 2006), Eami é ambientado no Chaco paraguaio, uma das regiões com maior índice de desmatamento do planeta, e trata da destruição provocada nos modos de vida das comunidades indígenas locais pela expansão da fronteira agrícola e pecuária.
Numa mistura de fábula com etnografia, o filme conta a história de Eami (Anel e Guesa Picanerai), uma garotinha do povo indígena ayoreo-totobiegosode que vagueia pela floresta em busca do que sobrou do mundo que conhecia depois de ver sua aldeia ser destruída e sua comunidade desintegrada.
Acompanhada por seus amigos animais e escutando a voz de seus avós, a personagem condensa mitos da cultura ayoreo-totobiegosode e carrega consigo memórias do passado, do presente e do futuro.
Em Eami, Paz Encina trabalhou com Jordana Berg, editora dos filmes de Eduardo Coutinho.
MUBI
ROTTING IN THE SUN
Descrito como uma meta-comédia acidamente engraçada e audaciosa, que alfineta a indústria do cinema e a cultura de auto-obsessão, Rotting in The Sun tem direção do chileno Sebastián Silva.
Na trama, Silva atua como uma versão de si mesmo, um diretor de cinema deprimido que durante uma viagem a uma cidade litorânea gay mexicana acaba conhecendo o influenciador digital Jordan Firstman (também interpretando uma versão de si mesmo), com quem concorda em colaborar num próximo projeto.
Quando chega de volta à Cidade do México, porém, Jordan não consegue encontrar Silva de maneira nenhuma. A partir daí, o influenciador inicia uma investigação por conta própria totalmente imprevisível.
HBO Max
MEU TIO JOSÉ
Baseada em fatos reais, a animação Meu Tio José conta a história do assassinato de José Sebastião de Moura sob o ponto de vista de Adonias, seu sobrinho. Conforme o adolescente vai descobrindo detalhes da vida do tio, que foi membro do grupo de esquerda 'Dissidência da Guanabara' e participou do sequestro do embaixador americano Charles Burke Elbrick em 1969, o filme revisita a ditadura civil-militar brasileira.
NOTÍCIAS
PIRÚ E EL CASO MONROY
Estrearam em 5 de outubro nos cinemas de seu país os longas peruanos Pirú: Un Viaje de Oro e El Caso Monroy. Escrito pelos irmãos Bismarck Rojas (também diretor) e Sara Rojas (produtora), Pirú foi gravado na cidade de Cajamarca e gira em torno da amizade entre um jovem da cidade que vai trabalhar na serra peruana e um garotinho que vive no campo.
Além de experimentarem o choque cultural, os protagonistas têm sua amizade posta à prova quando o jovem recebe no trabalho a missão de desapropriar seus novos amigos de suas casas para que se inicie um novo projeto de mineração na região. Em El Comercio
Já em El Caso Monroy, a história gira em torno de um funcionário público que prestes a se aposentar encontra um novo propósito de vida: ajudar mulheres encarceradas a retomarem suas vidas. Em pouco tempo, porém, Ronnie Monroy (Damián Alcázar) acaba se envolvendo com o corrupto sistema judicial peruano.


CAROLINA MARKOWICZ É HOMENAGEADA EM TORONTO
Aconteceu durante o 48º Festival de Toronto (entre 7 e 17 de setembro) a estreia mundial de Pedágio, novo longa-metragem da brasileira Carolina Markowicz, mesma diretora de Carvão.
De acordo com a sinopse, Pedágio conta a história de Suellen (Maeve Jinkings), uma cobradora de pedágio que percebe que pode usar seu trabalho para fazer uma renda extra ilegalmente. Com esse dinheiro, ela pretende financiar a ida de seu filho (Kauan Alvarenga) à caríssima cura gay ministrada por um famoso pastor estrangeiro.
Em Toronto, Markowicz ainda foi homenageada por sua carreira com um Tribute Awards na categoria Emerging Talent, tornando-se a primeira brasileira a receber essa que é uma das principais honrarias do Festival.
TEMPORADA DE FURACÕES NA NETFLIX
O livro “Temporada de Furacões”, escrito pela mexicana Fernanda Melchor e finalista do International Booker Prize de 2020, está prestes a ganhar uma adaptação cinematográfica original Netflix.
A direção e o roteiro da adaptação estão nas mãos de Elisa Miller, primeira mexicana a ganhar a Palma de Ouro do Festival de Cannes para curta-metragem de ficção com Ver Llover, de 2006.
Previsto para estrear em 1º de novembro deste ano, o filme trata dos acontecimentos desencadeados após o assassinato da bruxa de La Matosa, um povoado fictício que permite a Melchor explorar aspectos sociais como a violência e o machismo. Na Revista Quién
PRÊMIOS ARIEL 2023
Aconteceu em 9 de setembro, organizada pela Academia Mexicana de Artes y Ciencias Cinematográficas (AMACC), a cerimônia de entrega dos Prêmios Ariel 2023, o “Oscar do cinema mexicano”. O grande vencedor desta 65ª edição foi o filme Bardo, Falsa Crônica de Algumas Verdades (disponível na Netflix), de Alejandro G. Iñárritu, com oito estatuetas, incluindo Melhor Direção e Melhor Ator. Em seguida vem Huesera (disponível no Prime Video), de Michelle Garza Cervera, com quatro estatuetas, incluindo a de Melhor Filme de Estreia e a de Melhor Roteiro Original.
“Agradeço a Academia por reconhecer um filme de horror, que pra nós, diretoras, tem sido um gênero que nos abraça na tentativa de dar sentido a este mundo que muitas vezes é incompreensível”, disse Garza Cervera.
Outro destaque da cerimônia foi El Norte Sobre el Vacío, de Alejandra Márquez Abella (disponível no Prime Video), reconhecido como melhor filme do ano. O longa é ambientado no norte do país e toma como inspiração o caso real de Alejo Garza Tamez, assassinado ao proteger suas terras de uma organização criminosa.
Na categoria de melhor filme ibero-americano competiram 1976 (Chile), de Manuela Martelli; As Bestas (Espanha), de Rodrigo Sorogoyen; Carajita (República Dominicana), Ulises Porra e Silvina Schnicer; Los Reyes del Mundo (Colômbia), de Laura Mora; e o vencedor Argentina, 1985 (Argentina), de Santiago Mitre.
Este foi um ano especial para as mulheres do cinema mexicano. Além de terem os filmes mais indicados aos prêmios Ariel (Huesera com 17 indicações e El Norte Sobre el Vacío com 16), as principais categorias da premiação foram dominadas por filmes realizados e protagonizados por mulheres. Em Melhor Filme e Melhor Direção, por exemplo, Iñárritu competiu com Michelle Garza, Alejandra Márquez, Lucía Puenzo (por “La Caída”/ Prime Video), Teodora Mihai (por “La Civil”/ Star+) e Natalia Beristáin (por “Ruído”/ Netflix). Em Infobae
LA MEMORIA INFINITA SUPERA BARBIE EM SUA ESTREIA
La Memoria Infinita, de Maite Alberdi, mesma diretora de El Agente Topo (representante do Chile no Oscar 2021), fez história em sua estreia nos cinemas chilenos.
Lançado em 24 de agosto em 81 salas comerciais e independentes espalhadas por todo o Chile, o documentário acumulou mais de 6 mil espectadores em seu primeiro dia de exibição, bilheteria nunca alcançada por nenhum outro documentário chileno. No mesmo dia, o filme também foi o mais visto do país, superando os números de Barbie, que dominou as sessões desde seu lançamento em 20 de julho, e de Oppenheimer.
Com duas semanas em cartaz, o longa alcançou a marca de 150 mil espectadores e se tornou o documentário mais visto da história do cinema chileno, desbancando Ojos Rojos (2010), documentário que registrou os bastidores do processo classificatório que levou a seleção chilena de futebol à Copa do Mundo de 2010 na África do Sul.
Vencedor do prêmio do júri de Melhor Documentário em Sundance 2023, La Memoria Infinita conta a história de amor da Ex-ministra da Cultura Paulina Urrutia e do jornalista Augusto Góngora. Por meio de gravações intimistas do presente e do passado, Alberdi registra como o casal unido há mais de 20 anos lidou com o diagnóstico de Alzheimer recebido por Góngora em 2014 e reflete sobre a memória histórica do país.
“É incrível ter sido o filme #1 no Chile. Fico feliz que as novas gerações saibam quem foi Augusto Góngora. E que as pessoas se encontrem no cinema para emocionarem-se com os momentos felizes, a ternura e o amor mais autêntico que vemos ali”, comentou a diretora. Em La Tercera.
O CINEMA ARGENTINO NA MIRA DA EXTREMA DIREITA
Durante a última edição do Festival de San Sebastián (Espanha), realizada entre 22 e 30 de setembro, cineastas argentinos se uniram num ato contra o candidato da extrema direita à presidência argentina e suas ameaças de fechar o INCAA (Instituto Nacional de Cinema e Artes Audiovisuais).
Javier Milei já deixou claro que, se eleito, pretende privatizar empresas públicas e fechar órgãos que lhe parecem desnecessários, como o instituto de cinema argentino.
“Essa direita é particularmente alérgica ao cinema argentino porque ele tem sido imprescindível para a difusão da memória histórica sobre os horrores da última ditadura”, comentou o cineasta Benjamín Naishtat, codiretor e corroteirista de Puan, longa vencedor dos prêmios de Melhor Roteiro e Melhor Ator em San Sebastián. Reportagem em El Diário
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