ERA UMA VEZ NA AMÉRICA LATINA #34
Não termine 2024 sem assistir ao colombiano ANHELL69/ MOTEL DESTINO: “Era importante que os corpos estivessem à frente das palavras”, diz o diretor Karim Aïnouz/ Veneza 2024
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ANHELL69: O filme trans de Theo Montoya
Um carro fúnebre atravessa as ruas da cidade de Medellín, na Colômbia, transportando o corpo de um narrador que, segundo ele mesmo, já morreu várias vezes: de overdose, de suicídio, assassinado pela polícia, pelo narcotráfico…
Esse narrador é Theo Montoya, diretor e roteirista de “Anhell69”. É ele quem, em seu primeiro longa-metragem, nos apresenta um panorama sobre a marginalizada cena queer de Medellín, sua cidade natal, onde a juventude LGBTQIAP+ da qual faz parte costuma vislumbrar no horizonte muito mais morte do que futuro.
Enquanto fala do processo de feitura de um filme de ficção distópica que gostaria de ter realizado, Montoya compartilha as gravações dos testes de elenco que chegou a fazer com seus amigos em 2017, na época todos jovens de 20 e poucos anos. Com o tempo, a realidade se impôs à ficção e o projeto se transformou: o protagonista do filme estava morto, assim como muitos outros amigos do diretor que foram morrendo ao longo dos anos.
Agora, somados às narrações de Montoya sobre o filme que não aconteceu, os depoimentos desses amigos em seus testes de elenco evidenciam uma Medellín que já foi considerada a cidade mais violenta do mundo e que permanece assombrada pelos fantasmas dessa violência.
Assumindo um tom melancólico e sombrio sobre sua geração, o diretor também realiza intervenções mais íntimas na narrativa quando fala sobre sua relação com a cidade, com o país e seus fantasmas, com a religião, as drogas, a família, o conservadorismo, a sexualidade e as mortes dos amigos. Ao mesmo tempo, ele faz questão de revelar seu amor pelo cinema colombiano e pelo gótico tropical, mais especificamente (os filmes B dos anos 1970 e 1980 que se valiam do horror para retratar realidades sociais e políticas).
No montar de um quebra-cabeça narrativo punk composto por inspirações, formas, experimentações, memórias e desencantos, “Anhell69” vai se configurando como filme ensaio, registro documental de uma comunidade num espaço-tempo, uma ficção experimental sobre as margens. São vários filmes dentro de um mesmo filme. Um filme trans, como gosta de definir Montoya.
Disponível no catálogo da Filmicca
NOS CINEMAS
MOTEL DESTINO
Estreou nos cinemas brasileiros no último dia 22, depois de ter sua première mundial na competição oficial de Cannes, em maio deste ano, e uma primeira exibição nacional em Fortaleza, “Motel Destino”, o mais recente longa-metragem de Karim Aïnouz (“A Vida Invisível”, 2019), primeiro filme do diretor rodado inteiramente no Ceará desde “O Céu de Suely”, de 2006, e um dos longas nacionais mais aguardados do ano.
Protagonizado por Iago Xavier, Nataly Rocha e Fábio Assunção, e ambientado em Beberibe, no litoral cearense, o longa, um thriller erótico, dá inicio a seu conflito central quando o jovem Heraldo (Xavier), fugindo das garras do tráfico local, acaba sendo abrigado no motel Destino por Dayana (Rocha), proprietária do estabelecimento junto de seu marido Elias (Assunção).
Quando Heraldo se integra ao lugar, esse lugar considerado por Aïnouz como terreno de ilegalidade e fantasia, os universos particulares ali há muito solidificados têm sua ordem abalada. De um lado, o universo de Dayana, criado entre as demandas do trabalho e as opressões do marido. Do outro, o universo estável de poder de Elias, um homem branco sudestino muito afeito a seus privilégios. Entre eles agora, a energia de um jovem periférico que se dedica a sobreviver a todo custo ao sistema.
Ao enclausurar esses personagens no motel, cada um encerrado por suas próprias questões, mas todos encurralados pelos rumos de seus destinos, Aïnouz propõe um jogo com as geografias do espaço e dos corpos.
“Era importante que os corpos estivessem à frente das palavras”, comentou o diretor na coletiva de imprensa de lançamento do filme em São Paulo. De fato, “Motel Destino” se vale enormemente das linguagens corporais impressas pelos atores, do que se obtém entre o não dito e os olhares de corpos sociais que possuem cada um suas próprias bagagens.
Eletrizante em atmosfera e estética, “Motel Destino” chama atenção por suas inspirações na pornochanchada e no cinema policial e cresce, principalmente, conforme nos envolve na tensão gerada pela imprevisibilidade do comportamento de Elias (numa atuação totalmente magnética de Fábio Assunção). Há, no entanto, uma certa dificuldade da trama em orientar suas tensões, que acabam girando sempre em torno dos mesmos lugares.
ZÉ
Em “Zé”, seu terceiro longa-metragem, Rafael Conde adapta o livro reportagem homônimo do escritor cearense Samarone Lima e ficcionaliza a trajetória de José Carlos Novais da Mata Machado (interpretado por Caio Horowicz), jovem universitário que se tornou uma grande liderança do movimento estudantil em Belo Horizonte, chegou a ser vice-presidente da UNE (União Nacional dos Estudantes), lutou ativamente contra a ditadura civil-militar no Brasil e acabou torturado e assassinado nos porões do DOI-Codi/PE em outubro de 1973, aos 27 anos.
Intercalando um drama tradicional com algo de epistolar e teatral, o filme se dedica a abordar os “bastidores” da militância desse personagem-título que, perseguido pelo regime, abriu mão de uma vida confortável de classe média e recorreu à clandestinidade para se dedicar à alfabetização e à conscientização política dos mais pobres no Nordeste.
Acompanhamos, então, as movimentações do protagonista ao longo dos anos em que esteve sob a mira da repressão, seus deslocamentos pelo país, sua relação com a família, com a esposa, com os filhos e com os companheiros de resistência, seus pensamentos, convicções, frustrações, estratégias, preocupações, discursos. É assim, através da intimidade do personagem, remexendo com inquietação os sentidos da utopia que embalou seus dias e sob esse recorte do movimento jovem e estudantil, que Conde revisita a ditadura militar brasileira.
“Zé” está em cartaz nos cinemas desde 29 de agosto.
CIDADE; CAMPO
Chegou aos cinemas também em 29 de agosto, com distribuição pela Sessão Vitrine Petrobras, “Cidade; Campo”, o mais recente longa-metragem de Juliana Rojas (“Sinfonia da Necrópole”, 2014).
De acordo com a sinopse oficial, o filme apresenta duas histórias sobre migração entre a cidade e o campo. Na primeira parte, após o rompimento de uma barragem inundar sua terra natal, a trabalhadora rural Joana (Fernanda Vianna) se muda para São Paulo para encontrar sua irmã Tânia (Andrea Marquee), que mora com o neto Jaime (Kalleb Oliveira). Joana luta para sobreviver na “cidade do trabalho”. Na segunda parte, Flávia (Mirella Façanha) se muda com Mara (Bruna Linzmeyer), sua companheira, para a fazenda que herdou do pai, falecido recentemente. A natureza obriga as duas mulheres a enfrentar frustrações e lidar com memórias e fantasmas.
“Cidade; Campo” teve sua estreia mundial no Festival de Berlim deste ano e rendeu a Rojas o Urso de Ouro de Melhor Direção da Berlinale Encounters, seção criada pelo evento para fomentar trabalhos ousados de cineastas independentes.
NOTÍCIAS
VENEZA 2024
Acontece entre os dias 28 de agosto e 7 de setembro o 81º Festival Internacional de Cinema de Veneza. Neste ano, 21 filmes disputam o Leão de Ouro, prêmio máximo concedido pelo júri. Entre eles: “Ainda Estou Aqui”, do brasileiro Walter Salles, que conta com Fernanda Torres, Selton Mello e Fernanda Montenegro no elenco; “El Jockey”, do cineasta argentino Luis Ortega, mesmo diretor de “O Anjo”, de 2018; e “Maria”, do chileno Pablo Larraín, uma cinebiografia da cantora de ópera Maria Callas, interpretada por Angelina Jolie.
Entre os curtas-metragens competem pelo Prêmio Orizzonti, dedicado a filmes de estreia e mais independentes, autorais, o brasileiro “Minha Mãe é uma Vaca”, de Moara Passoni, que aborda as queimadas no Pantanal a partir do olhar e das experiências de uma menina de 11 anos; e “James”, de Andrés Rodríguez, uma coprodução entre Guatemala e México sobre um adolescente indigena que tenta sobreviver à solidão da vida num centro urbano.
Fora de competição, Petra Costa apresenta seu novo documentário, “Apocalipse nos Trópicos”, um registro sobre o avanço do fundamentalismo religioso na política brasileira. Também fora de competição, em evento especial, a colombiana Mónica Taboada-Tapia apresenta “Alma del Desierto”, documentário que acompanha Georgina Epiayu, uma mulher trans da etnia Wayúu, em busca de emitir sua carteira de identidade.
Já para a mostra paralela Giornate Degli Autori foram selecionados os filmes “Manas”, da brasileira Marianna Brennand, que foi gravado na região amazônica e trata da história de uma adolescente que se depara com uma rede de exploração sexual infantil; e “Sugar Island”, da dominicana Johanné Gómez Terrero, um filme que mistura drama e fantasia para abordar uma gravidez indesejada de uma adolescente de 14 anos que vive num povoado das regiões de plantação de cana-de-açúcar.
O curta-metragem “El Affaire Miu Miu”, da argentina Laura Citarella, mesma diretora de “Trenque Lauquen”, eleito pela tradicional revista francesa Cahiers du Cinéma como o melhor filme de 2023, também integra a programação do festival. Trata-se de um filme encomendado pela marca Miu Miu, da Prada, para ser o capítulo número 28 da "Miu Miu Women’s Tales", uma série de filmes da marca que são dirigidos por mulheres.
Por fim, na mostra clássicos, Veneza deve exibir “A Hora E A Vez De Augusto Matraga” (1965), de Roberto Santos, uma adaptação do conto homônimo de João Guimarães Rosa.
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