ERA UMA VEZ NA AMÉRICA LATINA #35
ENTREVISTA: "Fazer um filme sobre o Grande Otelo, pra mim, no fundo é também um processo de entender a formação cultural do país", comenta diretor do documentário Othelo, O Grande.
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OTHELO, O GRANDE
Estreou na última quinta-feira (5) o documentário “Othelo, O Grande", vencedor do Prêmio de Melhor Documentário no Festival do Rio 2023. Dirigido por Lucas H. Rossi dos Santos, o filme recupera a trajetória artística e pessoal de Sebastião Bernardes de Souza Prata, o Grande Otelo (1915 - 1993), o homem que desejou ser artista para poder comer bife a cavalo e acabou se transformando num dos maiores atores e comediantes da história do Brasil, precursor do cinema negro brasileiro numa época em que sequer se falava em cinema negro.
Narrado em primeira pessoa, a partir de uma admirável coletânea de materiais de arquivo e um louvável trabalho de montagem, o longa permite que Otelo fale por ele mesmo e se apresente a uma nova geração de público.
"Aqueles papéis não têm nada a ver comigo, e nada têm a ver com o negro brasileiro. Mas eu preciso sobreviver", costumava dizer Otelo. Nesse exercício de memória, resgate histórico e manipulação de arquivos, o filme valoriza o legado de uma jornada que é intrínseca à história do cinema e da TV no Brasil e evidencia a versatilidade de uma figura única, sua enorme capacidade de adaptação e sua engenhosidade.
Negro, órfão, neto de escravizados, umbandista e pai de cinco filhos, Otelo contrariou todas as probabilidades, driblou as diversas manifestações de racismo que atravessaram seu caminho ao longo das décadas e se tornou um ícone da cultura popular brasileira. Marcando o século XX por sua parceria com Oscarito e por sua maneira crítica de fazer humor, o artista chegou a trabalhar com cineastas como Orson Welles, Joaquim Pedro de Andrade, Werner Herzog, Júlio Bressane, Marcel Camus e Nelson Pereira dos Santos.
No final de 2023, o Grande Prêmio do Cinema Brasileiro passou a se chamar Prêmio Grande Otelo do Cinema Brasileiro, incorporando o nome do Troféu Grande Otelo no título da premiação.
Entrevistei o diretor Lucas H Rossi dos Santos, o produtor Ailton Franco Jr. e José Prata (o Pratinha), ator e filho de Otelo. Confira a seguir:
Vanessa Panerari: Lucas, para começar, como você decide fazer um filme sobre o Grande Otelo? É seu primeiro longa-metragem e foi um processo que começou há muito tempo, certo?
Lucas H. Rossi: Eu decidi fazer o filme quando estava começando a fazer cinema no Rio, a trabalhar com cinema, ter uma formação de produtor. Então, em algum momento pensei em fazer um filme, e fiquei muito refletindo sobre o que poderia ser. E o Otelo surge para mim na minha infância, meu pai me apresenta Otelo quando eu ainda era criança. Ele me apresenta Otelo como um novo [Charles] Chaplin, como um Chaplin do cinema brasileiro, e eu fiquei muito com essa imagem na cabeça. Então fui estudar no Centro Afrocarioca de Cinema Zózimo Bulbul, fui fazer um curso de imersão de cinema negro, e nessa época conheci o irmão dele [de José Prata], o Carlos, que é o mais velho. E aí lembrei do Otelo, dessa paixão minha de infância por esse personagem, e decidi fazer o filme. O primeiro passo foi meio que esse, conhecê-lo na infância através do meu pai e depois conhecer o filho dele. E aí eu comecei a tatear como seria isso.
VP: Qual a importância de diretores de uma nova geração do cinema negro estarem resgatando a história e a memória desses artistas precursores, como fez também recentemente Juliana Vicente com um documentário sobre Ruth de Souza?
LHR: Eu acho que é um trabalho muito importante, não só porque são pessoas negras fazendo filme sobre pessoas negras, mas porque acho que gera uma identificação de caminho, de trajetória. Fazer um filme sobre o Grande Otelo, pra mim, no fundo é também um processo de entender a formação cultural do país. Otelo participou do cassino, participou do teatro de revista, participou da Chanchada, do Cinema Novo, chegou e participou muito, colaborou, nesse início da televisão. Então ele é um cara que percorreu essa formação de uma identidade cultural brasileira. Como o Brasil se vê, como o Brasil se enxerga, a construção desse corpo negro em cena. É um cara que colaborou no imaginário social da imagem do negro.
Então acho que fazer um filme que resgata essa história é também fazer com que a gente se reconheça e entenda os nossos próprios caminhos. Sobre a coisa da nova geração: eu tenho uma amiga que dá aulas na CAL (Casa das Artes de Laranjeiras), que é uma escola de teatro do Rio de Janeiro que fica na Zona Sul, um recorte onde a elite participa e tal, e ela assistiu a um corte do “Othelo” uma vez e foi para a sala de aula dela, dar aula para 40 alunos. E aí perguntou quem ali conhecia o Grande Otelo. Quatro ou cinco alunos, se não me engano, conheciam. Estudantes de teatro não conhecem Otelo…Então a importância desse resgate para uma nova geração é isso também: é para que as pessoas se identifiquem com essa história, com essa trajetória, que é não só do Otelo, mas, de novo, da cultura deste país. Acho que é importante nesse sentido, para que as pessoas tenham noção da importância histórica desse cara.
José Prata: [Otelo] veio de uma época em que ele não era o estereótipo normal para se jogar no cinema, para entrar num filme, para fazer qualquer interpretação de um advogado, de um médico ou de um cientista. O tipo fugia totalmente do aspecto físico dele. E ele foi abrindo caminho, a ferro e fogo, vamos dizer assim. Abrindo caminho de tal forma que ele conseguiu entrar no imaginário da sociedade, ele entrou no coração do povo de uma forma tão querida e tão bonita que até hoje as pessoas lembram e têm a curiosidade de me perguntar, como filho, como ele era…se ele era brincalhão, se ele não era. E é estranho, porque, para mim, ele era só o pai. Era aquela pessoa que chegava em casa, dava as ordens, educava, conversava e tudo mais. Não existia esse lado pitoresco engraçado, até que eu fui vendo as aparições dele em televisão, em apresentação, em entrevistas também, e eu fui dizendo “ué, todo mundo o conhece”. Foi aí que eu fui tomando noção da proporção que ele tinha alcançado, que ele tinha atingido através do trabalho dele, através da vivência dele. Para mim era pouco, porque, como filho, eu me lembro, ainda nos meus 15 anos, que ele pouco trocava com a gente em casa, porque ele acordava por volta do meio-dia, saía para fazer um comercial, para fazer uma gravação de novela, de linha de show. Aonde tinha um jeito de ele trabalhar, de mostrar o talento dele, ele estava lá. Então ele só chegava em casa de madrugada, porque as coisas nesse meio terminam tarde, quando a gente faz o lado da cultura.
Ele chegava em casa e a gente já estava dormindo. Então a gente se cruzava muito pouco, mas, graças a Deus, eu ainda consegui conviver bastante com ele, a ponto de sair com ele nos lugares e prestar melhor atenção nas coisas que ele fazia.
VP: E como foi pra você ver o filme pronto?
JP: Ver o filme pronto, em si, já é uma vitória. Mas o carinho que foi dedicado a esse filme, a pesquisa do nosso diretor Lucas, a busca que ele fez das pessoas que ainda estavam vivas e que trabalharam com meu pai e tudo mais, eu achei, assim, genial, porque essas são as pessoas que conviveram, que tinham histórias que não aparecem nas telas.
VP: Há um momento ali no filme em que Otelo critica um pouco o Cinema Novo sobre um certo distanciamento do popular, do público…
LHR: Bom, acho primeiro que para o Otelo a inserção do Cinema Novo foi algo que fez com que a Chanchada acabasse, e a Chanchada foi onde ele se projetou com um grande protagonismo. Acho que no filme a gente traz uma discussão sobre ele ser também considerado escada para o Oscarito, né? Então, por mais que ele protagonizasse, ele estava duplando, geralmente com um ator branco. E todos esses atores acabavam tendo o mesmo tempo de tela, mas de alguma maneira um protagonismo maior, um cartaz maior, um salário maior. Então, essa é uma questão importante. Porque é isso, a Chanchada foi onde ele se projetou com maior destaque e ao mesmo tempo foi o lugar de onde ele sofreu um racismo brutal de várias maneiras. Ainda assim, quando o Cinema Novo vem, acho que ele entra num momento de marasmo. De uma vida muito agitada que começa a ficar mais calma, por falta talvez um pouco de recursos financeiros que foram diminuindo, e talvez também por compromissos de trabalho. Ao invés de gravar tantos dias na semana, já gravava um pouco menos. A vida dele foi transformada através desse momento do Cinema Novo, então acho que ele tinha uma coisa de ficar meio chateado com isso.
JP: Eu acho que a Chanchada era mais próxima do povo, né? Era mais real para o povo daquela época, porque o Cinema Novo vem com uma outra ótica, uma outra escrita, uma outra imagem com a qual o pessoal não estava muito acostumado. Acredito que a Chanchada o preparou, de repente, para o Cinema Novo.
Ailton Franco Jr: O cinema popular ainda existe, né? As comédias são as que mais conseguem chegar em termos de uma bilheteria grande. Não como os grandes lançamentos da indústria dominante que é a norte-americana, mas elas chegam. Olhando para as cinematografias de outros países, as que têm a maior popularidade em termos de público no cinema nacional são as comédias. Na França, são as comédias que conseguem avançar. Então a gente tira a Chanchada que era ligada à música e à comédia, cai o cinema mais musical, e você tem um cinema popular que é comédia.
JP: Uma curiosidade que eu me lembro bem, que ele comentava na época em que fez Cinema Novo, foi sobre o filme “Macunaíma", que foi premiado e tudo mais, mas ele não se identificava bem, não achava que fosse um grande filme. E, no entanto, ele ganhou a Coruja de Ouro ( prêmio criado pelo Instituto Nacional de Cinema no final da década de 1960) pela atuação nesse filme. Foi bem projetado, foi premiado e tudo, mas ele não achava que fosse o melhor trabalho da vida dele. Era um trabalho.
VP: E depois, na TV, você acha que ele se sentiu mais próximo das pessoas de novo?
JP: Eu acho que sim, porque ele era muito expansivo, muito comunicativo. Ele tinha uma coisa de alcance, de analisar as pessoas. Ele conseguia transpor barreiras e conseguia uma aproximação maior com as pessoas, na forma dele de falar, de se expressar, de brincar.
AFJ: Otelo era um gênio, na realidade. Acho que todo mundo tem a figura do ator, do humorista, mas ele não era um humorista só humorista. Ele era um grande ator, uma pessoa muito inteligente. Que sofreu muito, mas era uma pessoa muito inteligente.
VP: Esse é um filme de material de arquivo, basicamente. De garimpo, de montagem. Eu queria que vocês falassem um pouco sobre como foi encontrar e trabalhar todo esse material.
AFJ: Na parte inicial, você tem acesso ao arquivo em qualidade mais inferior, e depois tenta ir descobrindo. Na verdade, foi um aprendizado. É a primeira vez que faço vídeo com material de arquivo, e depois acabei também fazendo todo o licenciamento. Foi difícil buscar as cópias, e tem cópias que a gente conseguia com material que não dava [para usar]. Tem trechos ali que a gente teve que usar do que se encontrou um pouco na internet. Até porque também não encontrava os próprios detentores do direito. Você tem arquivos que o detentor do direito não foi encontrado, sumiu. E daí tentamos de todas as formas. Mas o aprendizado foi que esse encontro é importante, você trabalhar não só a preservação, mas também respeitar os direitos das obras existentes. Então foram todos licenciados para todas as plataformas, tanto música quanto imagem. Porque para construir uma obra nova a gente tá se apropriando de imagens já existentes, de sons já existentes. Então foi um aprendizado não só do processo, mas também da importância da preservação e de respeitar a cadeia de direitos que existem em todos os arquivos. E teve a grande parceria da Cinemateca Brasileira. Como Otelo fez uma boa parte da produção da Chanchada, grande parte do material vem da Cinemateca Brasileira, e de vários outros arquivos que tem tanto no Brasil, quanto no exterior.
VP: Aconteceu de vocês acharem que faltou alguma coisa?
LHR: Aconteceu. Algumas coisas, mas tem uma coisa específica que aconteceu que foi bem chata. O Otelo tinha um gravador Nagra, um gravador antigo de som, em que ele ficava constantemente gravando coisas que ele escrevia, poemas, canções, coisas da vida dele mesmo, de ficar ali falando “ah, ontem fiz isso, amanhã vai ser assim”. E aí essas gravações dele foram consolidadas todas em vários CDs diferentes quando a Funarte decidiu preservar o acervo do Otelo em parceria com a produtora Sarau, patrocinada pela Petrobras, um grande projeto em memória do Grande Otelo. E aí eles digitalizaram esses arquivos em CDs, e eram tipo 20, 30 horas dele, em primeira pessoa, ele por ele mesmo, contando várias coisas da vida, coisas do cotidiano, cantando, inventando na hora. Então era um material muito importante que sumiu, simplesmente. A Funarte não conseguiu achar, aí a Videofilmes ia fazer um filme sobre o Grande Otelo e em tese estariam com posse disso, mas também não conseguiam dizer onde estava. Quando percebemos, estávamos procurando esses arquivos, esses sons, durante uns quase cinco anos. Todo mês a gente, em algum momento, voltava a falar sobre isso. E simplesmente desapareceu, então foi bem chato.
VP: Para a narração em primeira pessoa seria fundamental…
LHR: É, é a base do filme. Outra coisa também que aconteceu foi que, durante a realização do filme, a Cinemateca pegou fogo duas vezes. Então ficamos em um estado de tensão, de “Caramba, e agora? Será que perdeu alguma coisa? Será que não?”. Então acho que, como o Ailton falou, essa coisa que o filme traz de refletir sobre a preservação e a memória, durante a realização do processo, foi muito intensa. Porque se por um lado esse formato é mais simples do que abrir câmera e sair filmando, no sentido de logística, por outro é muito mais complexo, porque você não sabe o que você vai ter do que você precisa. Então é um processo de montagem e de pesquisa muito intenso mesmo. Muito único. De mergulhar naquilo e ficar... Pesquisando, pesquisando, montando, ressignificando os arquivos. É um cinema muito específico o cinema de arquivo.
VP: O que vocês acham que fica de legado da trajetória do Otelo em relação ao cinema brasileiro atual? Em relação ao cinema negro brasileiro atual? Qual o cenário?
LHR: Bom, eu faço parte da APAN, que é a Associação de Profissionais do Audiovisual Negro, e lá a gente sempre tem um pouco dessas discussões. O que é o cinema negro, em que momento ele se encontra, para onde a gente vai, qual é a forma de ir, enfim. Aqui em São Paulo, especificamente, tem um cara muito especial, o Heitor Augusto, que é uma pessoa muito querida que sempre está nesse movimento de entender o cinema negro e decifrar o cinema negro brasileiro. Mas o lance é que eu acho que cada vez mais as pessoas estão fazendo filmes e acho que isso contribui para que o cinema negro cada vez mais se torne um movimento maior, com mais gente, com mais filmes. Recentemente a gente vem de um momento muito especial, muito bonito, onde a gente vê grandes feitos acontecerem. O Gabito (Gabriel Martins), por exemplo, acabou de lançar o “Marte Um”, que foi um filme que conseguiu ter um grande público em salas de cinema, ficou várias semanas em cartaz, conseguiu entrar nessa caminhada de tentar ir para o Oscar. Ele pôde ficar um tempo nos Estados Unidos mostrando um filme para críticos norte-americanos e salas de cinema, experimentando o que é isso. Tudo isso também é um processo de amadurecimento do cinema negro, que é algo recente. Então, acho que é um momento especial, acho que é um momento bonito e acho que é um momento que eu sinto que está cada vez mais forte, que está acontecendo, está se tornando um corpo mais presente nessa história do cinema brasileiro, por conta de mais gente fazendo, os lugares que a gente tem conseguido chegar, os caminhos que a gente tem conseguido abrir.
O André (André Novais Oliveira) acabou de fazer um longa novo, e aí o Gabito vai filmar agora outro longa. Então a gente vê as coisas acontecendo, de uma forma que anos atrás talvez não fosse tão possível de imaginar. Hoje temos uma pluralidade de cinemas negros espalhados pelo país e de alguma maneira todos eles acessam lugares muito interessantes de desenvolvimento de linguagem, de estabelecer narrativa e de conseguir público, que é o mais difícil para o cinema brasileiro hoje em dia, né? Independente de cinema negro brasileiro, o cinema brasileiro em si tem essa dificuldade de atrair público para a sala de cinema.
Quando falo de “Marte Um” é por conta dessa importância. O Gabito, que é um realizador jovem, negro e de Minas Gerais, conseguiu mobilizar, sei lá, 500 mil pessoas saindo de casa e indo para salas de cinema. Isso é um grande feito. Não só para ele, não só para a Filmes de Plástico [produtora do filme], mas para o cinema negro mesmo. Eu enxergo um futuro bem promissor.
VP: Você atribui isso às políticas públicas e ações afirmativas, por exemplo?
LHR: Certamente. É impossível desassociar uma coisa da outra.
AFJ: É essencial. Para todo cinema, no geral, são muito importantes as políticas culturais para a realização dos filmes. E as políticas afirmativas para haver maior inclusão.
LHR: E acho que no caso do cinema negro, especificamente, não só ação afirmativa no que se refere a edital, mas também políticas públicas no sentido de cotas universitárias, inserção de projetos sociais onde a gente leva o cinema para ser pensado em outros espaços, por outras pessoas, que seja por um workshop, que seja por uma sessão com debate, que seja como for.
Então, acho que, no caso do cinema negro, as ações afirmativas são muitas. Plurais e muito importantes para que exista justamente a base, que é a educação, e esse lugar de estabelecer, vamos dizer assim, um lugar de mercado. A pessoa conhecer cinema, se sentir à vontade de pensar em realizar filmes, estudar isso, amadurecer essas ideias, assistir a muitos filmes, debater muitos filmes, começar a fazer seus primeiros curtas e ganhar um edital para fazer um longa, esse processo inteiro passa por políticas públicas e ações afirmativas. É impossível desassociar, são raríssimos os casos onde você não vê isso tendo um peso muito forte na trajetória desses realizadores.
VP: Que Otelo vocês esperam que as pessoas guardem com elas depois de verem o filme?
LHR: Eu me deparei com 300 horas de material de arquivo, então me deparei com vários Otelos, de vários personagens a vários Otelos pessoa também. Então, por vezes, Otelo estava “ah, o racismo no Brasil não existe”. Em vários momentos ele falava isso. E em vários momentos ele falava tudo o que ele fala no filme, que foi um recorte muito específico. Então decidi fazer uma linguagem em primeira pessoa, que já é uma desafio, de um cara em uma memória póstuma, um cara que já está morto. E aí, além disso, decidi muito que ele fosse um patriarca da raça, que ele fosse uma espécie de griô, um homem negro mais velho que defendeu o tempo todo a questão racial no Brasil. Muito embora, para a sobrevivência dele, ele não tenha feito isso o tempo todo como está no filme. Então, o Otelo que eu gostaria que as pessoas levassem da sala de cinema é esse Otelo patriarca da raça, o cara que está defendendo o movimento negro muito antes desses debates estarem tão presentes como estão no cotidiano dos tempos que a gente vive agora.
AFJ: O meu maior objetivo era fazer um filme que resgatasse o Grande Otelo para uma nova geração, mesmo para algumas últimas gerações que não conheceram o que ele representava, sua inteligência, todas as vertentes de um artista completo, uma pessoa séria. Isso para mim era muito importante de conseguir, e estou muito feliz de o Lucas ter encontrado essa narrativa, essa maneira de apresentar o Otelo para essa nova geração.
JP: Eu gostaria que ele nunca fosse esquecido. Gostaria não, ele conseguiu. Ele tem esse carinho das pessoas.
VP: Lucas, depois desse primeiro longa-metragem, que tipo de cinema você pretende fazer? Continuar trabalhando com material de arquivo?
LHR: Antes de fazer “Othelo, O Grande”, fiz dois curtas de arquivo. Então esse é meu terceiro filme de material de arquivo já. Mas eu não sei muito se tenho essa convicção de ser tão fiel a uma linguagem só dentro do meu cinema. Acho que tenho mais uma vontade de me desenvolver através da história que estou contando. Para mim, o processo é muito mais importante do que estabelecer uma linguagem só. Então, de alguma maneira, acho que sim, faria novos filmes de arquivo, dependendo das histórias que eu fosse contar. Ao mesmo tempo, eu não faria também. Por exemplo, agora estou me organizando para fazer uma ficção, que já é uma coisa muito diferente. E vou filmar agora em novembro um novo longa também, que é um documentário, mas é um filme com entrevistas. Então sempre fico tentando achar o que o filme pede, o que o filme precisa, de que maneira ele pode ser contado, de que maneira ele pode ser feito.
“Othelo, O Grande” está em cartaz nos cinemas.
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