ERA UMA VEZ NA AMÉRICA LATINA #39
Em ALMA DO DESERTO, uma mulher indígena transexual busca ter sua identidade de gênero reconhecida/ EMILIA PÉREZ: totalmente deselegante/ ESTADO DE SILÊNCIO na Netflix/ A COZINHA no Max
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ALMA DO DESERTO
No final de janeiro, durante a semana da visibilidade trans, a distribuidora Retrato Filmes lançou nos cinemas brasileiros o documentário “Alma do Deserto”, de Mónica Taboada-Tapia. Fruto de uma coprodução entre Brasil e Colômbia, o filme tem como protagonista Georgina Epiayú, uma mulher trans da etnia Wayúu que por mais de 40 anos buscou ter sua identidade de gênero reconhecida.
Georgina vive na região do deserto de La Guajira, no norte colombiano, e se desloca com alguma frequência até o centro de Uribia, município reconhecido como capital indigena da Colômbia, para tratar da emissão de um novo documento de identidade que garanta seus direitos civis - o antigo, com seu nome de nascimento, foi queimado num incêndio criminoso provocado por vizinhos que rejeitavam sua presença.
Durante os oito anos finais do processo de emissão do tão sonhado novo documento, Taboada-Tapia acompanhou Georgina nessas suas peregrinações por entre a aridez das paisagens do deserto e a das repartições públicas. Desses registros nasce um filme centrado na jornada de ser, existir e resistir de uma pessoa triplamente marginalizada: por ser indígena, por ser uma mulher trans, por não falar tão bem o espanhol, a “língua oficial”.
Enfrentando, portanto, um duplo desafio, de gênero e étnico, a jornada de Georgina acaba por revelar também as dificuldades vividas pelas comunidades originárias em relação ao acesso a documentos e trâmites impostos por um modo de vida burocrático que pouco tem a ver com os seus.
Conforme registra os deslocamentos de sua protagonista pelas geografias do território e do tempo, procurando sempre projetar no visual a vastidão de suas questões, a diretora nos apresenta uma mulher solitária, mas resiliente. Corajosa, apesar de sempre encurralada por uma burocracia exaustiva, pela intolerância da comunidade e pela rejeição da família. Uma mulher que encontrou sua própria maneira de viver, sua própria rede de apoio, e que não abre mão de legitimar seu existir.
“Não é apenas uma história inspiradora e esperançosa para a comunidade LGBTQIA+ ou para aqueles que se identificam com o queerness, mas também nos ajudou a mergulhar no âmago de uma parte da comunidade Wayúu que a Colômbia desconhece e que não podemos continuar ignorando, porque apela ao nosso sentido de humanidade. O filme pode ressoar com o espírito de muitas pessoas em diferentes lugares do planeta”, comentou Taboada-Tapia no material divulgado à imprensa.
“Alma do Deserto” foi exibido na Giornate Degli Autori, uma das mostras competitivas do 81ª Festival de Veneza, em 2024. Ali, o filme acabou vencedor do prêmio Queer Lion, dedicado a produções de temática LGBTQIAP+.
Lançado em 30 de janeiro.
TAMBÉM NOS CINEMAS
BABY
O ano começou excelente para o cinema nacional. Logo em 9 de janeiro estreou “Baby”, de Marcelo Caetano (“Corpo Elétrico”, 2017 - disponível gratuitamente no SESC Digital até 23/03), um romance marginal.
Na trama, Wellington (João Pedro Mariano) se vê sem rumo pelas ruas de São Paulo após ser liberado de um Centro de Detenção para jovens e descobrir que sua família deixou a cidade sem avisá-lo. Numa noite, durante uma visita a um cinema pornô com um grupo de amigos, ele conhece Ronaldo (Ricardo Teodoro), um homem mais velho que trabalha como garoto de programa. Aos poucos, os dois estabelecem uma relação de altos e baixos, marcada tanto por paixão, prazer, parceria e cuidado quanto por ciúmes, dependências, inseguranças..
Ambientado no centro de uma São Paulo que todos os dias cruza milhares de vidas que acabam passando despercebidas umas pelas outras, o filme chama atenção especialmente por estabelecer e mapear, a partir de conflitos geracionais, as geografias sociais de seus dois protagonistas.
De um lado, um jovem que volta a experimentar a liberdade, que ressignifica o sentimento de família também através da companhia dos amigos, que se expressa e reafirma sua autoestima através do frescor de coletividades como o movimento ballroom. Do outro, um homem já há muito amargurado pela vida, meio que um lobo solitário atado às responsabilidades do sobreviver, às frustrações do um dia após o outro, ao que tem para hoje, com autoestima e sonhos deteriorados.
Nessa história de anti-heróis, Caetano deixa de lado clichês sobre moral, violências, preconceitos, sexualidade e classe e escolhe investir nas nuances de dois protagonistas que se afetam mutuamente, cujas trajetórias são tão opostas quanto complementares na reconstituição de um panorama maior sobre seu entorno.
Ainda em cartaz em algumas cidades.
KASA BRANCA
O jovem Dé (Big Jaum) não leva uma vida fácil na periferia da Chatuba, no Rio de Janeiro. É ele quem cuida sozinho de sua avó, dona Almerinda (Teca Pereira), que recebeu o diagnóstico de estágio avançado de Alzheimer. O dinheiro que ela recebe de aposentadoria nunca dá para todas as contas, mas Dé não pode deixá-la para ir trabalhar.
Com a ajuda de seus dois inseparáveis melhores amigos, Adrianim (Diego Francisco) e Martins (Ramon Francisco), o protagonista de “Kasa Branca” se dedica a dar um jeito de enfrentar os desafios do dia a dia, encontrando frestas na rotina apertada para conseguir aproveitar os últimos momentos de dona Almerinda.
Responsável pela direção e pelo roteiro do filme, Luciano Vidigal (“Cidade de Deus: 10 Anos Depois”, 2013) desenvolve uma crônica sobre os que cuidam e os que são cuidados, pautada num forte senso de comunidade e cooperação.
Bonito, sensível e pouco previsível em sua perspectiva do olhar, “Kasa Branca” elabora, a partir das miudezas do cotidiano de seus personagens, a geografia dos afetos e dos perrengues de seu universo.
Este é o segundo longa-metragem produzido pelo grupo Nós do Morro ( "A Festa de Léo", 2024/ disponível no Globoplay).
Lançamento de janeiro da Sessão Vitrine Petrobras. Uma ótima abertura de ano para o projeto.
Ainda em cartaz em algumas cidades.
KAYARA - A PRINCESA INCA
Estreou em 20 de fevereiro, com distribuição da Paris Filmes, a animação “Kayara - A Princesa Inca” .
Escrita e dirigida pelo peruano Cesar Zelada (“Ainbo - A Guerreira da Amazônia”, 2021 - disponível no Prime Video), a produção conta a história de uma valente jovem de 16 anos que sonha em se tornar parte do importante grupo de mensageiros do Império Inca, conhecidos como Chasquis. O problema é que o grupo sempre foi formado apenas por homens.
Decidida a romper com essa tradição e provar seu valor, Kayara precisará superar terrenos traiçoeiros, defender a desconhecida Cidade Dourada dos grandes perigos da exploração e salvar seus amigos e familiares de ameaças inesperadas.
SOBRE EMILIA PÉREZ…
A imagem de alguns mariachis vestidos com trajes típicos adornados com luzinhas piscantes abre “Emilia Pérez”, e este parece ser o prenúncio de toda a superficialidade emperiquitada que tem a nos oferecer o título mais polêmico da temporada 2024/2025 de premiações de cinema.
Dirigido pelo francês Jacques Audiard (“Dheepan: O Refúgio”, 2015), “Emilia Pérez” virou assunto desde muito antes de estrear comercialmente mais por seu desgovernado festival de equívocos dentro e fora das telas do que por qualquer outra coisa.
Na trama, uma narco-história musical, um líder de cartel de drogas mexicano (Karla Sofía Gascón) deseja passar por uma cirurgia de redesignação sexual, abandonar o nome masculino que recebeu ao nascer, deixar para trás suas atividades criminosas e mudar de vida assumindo sua verdadeira identidade, a de Emilia Pérez. Para isso, ele procura a ajuda de Rita (Zoe Saldaña), uma advogada profissionalmente frustrada, afetada pelos parâmetros de justiça aos que vive exposta. Num salto temporal, depois de terminado seu processo de transição de gênero, Emilia decide voltar a cuidar da família, sua ex-esposa Jessi (Selena Gomez) e os filhos pequenos, e fundar uma ONG para ajudar vítimas da violência dos cartéis.
É extensa a lista dos variados e já bastante divulgados disparates cometidos pelo filme: desde as desrespeitosas declarações da equipe sobre ser limitante filmar no México (mesmo sendo ambientado no país, o longa foi gravado na França) ou sobre uma suposta dificuldade de encontrar atrizes mexicanas para os papéis principais (as protagonistas são estadunidenses ou europeias) até a superficialidade constrangedora do enredo. Sem falar, claro, do fiasco de uma campanha ao Oscar marcada por picuinhas.
No quesito superficialidade, aliás, o buraco é bastante embaixo: há as letras de músicas que parecem saídas de algum gerador de lero lero, utilizadas como muleta narrativa para contar/cantar o avançar da história sem de fato mostrá-lo acontecendo; há um drama familiar que circunda o social e que sofre de considerável falta de traquejo no manipular do melodrama; e há o arco principal de redenção da protagonista, que talvez seja o ponto-chave da maioria dos problemas do filme.
Ao assumir a identidade de Emilia Pérez, a personagem procura desvencilhar-se daquele universo masculino de virilidade, violência e poder onde antes havia construído seu império. Então, com a ajuda de Rita e de seus conhecimentos sobre as engrenagens do poder paralelo no país, Emilia busca redenção assumindo a tarefa de ajudar famílias a encontrarem os corpos de seus desaparecidos.
Mas isso é tudo muito raso, bobo e preguiçoso. Para além de toda a problemática de resumir a transição de gênero de sua protagonista e sua mudança de personalidade e objetivos a uma cirurgia de redesignação sexual, sem lhe conferir grandes nuances subjetivas, emocionais, de vivências, o filme ainda cai na armadilha de ignorar um fator muito importante: nas regiões dominadas pelo narcotráfico, as mulheres vivem em estado constante de horror. O estado paralelo de poder e barbárie se instala a partir de códigos de masculinidade, é verdade. São homens os que controlam territórios e corpos, os que comunicam poder sequestrando, violando, torturando e assassinando ou traficando mulheres.
Não seria necessário, portanto, retratar uma transição de gênero de modo tão leviano para alcançar o contraste entre um universo de masculinidade e violência e outro de cuidado, cooperação, vulnerabilidade. Bastava olhar para as mulheres mexicanas, para as que são assassinadas, para as que procuram pelos corpos umas das outras, ali estaria o contraste.
Nesse sentido, o filme se transforma numa caricatura conservadora daquilo que possivelmente pretendia ser, porque não encontra o tom adequado de provocação, ironia, questionamento, proposição. Porque não convence sequer como exercício imaginativo interessante, simplesmente limitando-se a superfícies de representações. E sobre isso cabe responsabilidade a toda a equipe, da concepção à execução. São todos responsáveis por validar em muitas etapas essa perspectiva vaidosa a respeito de uma outra realidade, por manter uma postura mais preocupada com fazer caber ideias previamente concebidas do que com o olhar atento aos pormenores.
Indicação: “A Noite do Fogo”, de Tatiana Huezo. Um drama protagonizado por três garotas que vivem numa região controlada por cartéis. Disponível na Netflix.
NO STREAMING
A COZINHA (Max)
Em seu mais recente longa-metragem, o mexicano Alonso Ruizpalacios (“Güeros”, 2014/ “Um Filme de Policiais”, 2021) explora o microcosmo tensionado do trabalho árduo de uma cozinha nova-ioquina cujo quadro de funcionários é composto principalmente por imigrantes ilegais de diferentes partes do mundo.
Todos os dias no restaurante The Grill, em Manhattan, na Times Square, um fluxo intenso de clientes é atendido por uma coreografia de serviços muito bem ensaiada. Dentro da cozinha, porém, a crescente de exaustão física, emocional e psicológica desses trabalhadores invisibilizados, que se esgueiram pelos bastidores fazendo as engrenagens do local funcionarem sem que ninguém os perceba, termina num caos incontornável.
Inspirado pela peça teatral homônima de Arnold Wesker, a mesma que inspirou a série “The Bear”, Ruizpalacios utiliza a cozinha como metáfora tragicômica sobre a composição social/cultural estadunidense e seus dilemas.
No centro da trama, o indisciplinado cozinheiro mexicano Pedro (Raúl Briones), que vive sempre no limite, desesperado por sua paixão pela inalcançável garçonete estadunidense Julia (Rooney Mara) e pela urgência em conseguir regularizar-se no país.
Num contexto de políticas imigratórias trumpistas completamente desumanizantes, “A Cozinha” lança olhar atinado sobre aqueles que compõem as estruturas invisíveis dos EUA. Um excelente filme sobre traumas às vezes não tão óbvios do imigrar, choques culturais e encontros de idiomas, precarização do trabalho, esperança de uma vida melhor, sobre a vulnerabilidade da ilegalidade.
Vale mencionar também a fotografia em preto e branco, que aqui vai além do estilizar, nos suspendendo naquele espaço, nos aproximando daquelas experiências, contribuindo consideravelmente com a imersão.
TANTAS ALMAS (Filmicca)
Em “Tantas Almas”, de Nicolás Rincón Gille, um velho pescador chamado José (José Arley De Jesús Carvallido Lobo) viaja pelo Rio Magdalena procurando pelos corpos de seus filhos sequestrados por paramilitares. Por décadas, esse gigantesco rio, que corta a Colômbia de ponta a ponta, foi usado como vala comum para desova de cadáveres. Escrevi mais sobre o filme aqui.
ESTADO DE SILÊNCIO (Netflix)
“Nenhuma ditadura latino-americana clássica do século passado produziu mais terror que a democracia mexicana dos últimos 22 anos”
Dirigido por Santiago Maza e produzido por Diego Luna e Gael García Bernal, o documentário “Estado de Silêncio” escuta quatro jornalistas mexicanos sobre o desafio de trabalhar com informação no país que mais assassina profissionais da área.
Num formato clássico de entrevistas, o filme recolhe depoimentos que acabam mapeando com amplitude a relação entre esses assassinatos e a formação de zonas de silêncio sistemáticas, estabelecidas pela infiltração do narcotráfico nas diversas esferas da política social e até institucional do país. Nessas tais zonas de silêncio, que se configuram sob as leis dos poderes paralelos, denunciar e investigar corrupção e violência passa a ser proibido e punido.
Então, enquanto sobreviventes de um cenário de barbárie que atravessa diretamente suas atuações profissionais, esses jornalistas falam sobre o desgaste emocional, psicológico e físico de viver constantemente sob ameaças, sobre a precarização de seus trabalhos, sobre a solidão de permanecer vulnerável diante de falhos e ilusórios mecanismos de proteção.
O CASTELO DA PUREZA (Filmicca)
Lançado em 1973 e dirigido por Arturo Ripstein, cineasta considerado padrinho do cinema independente mexicano, “O Castelo da Pureza” é um drama baseado em um caso criminal real ocorrido na Cidade do México em 1959.
Na trama, Gabriel (Claudio Brook), sob o pretexto do cuidado, mantém a esposa e os três filhos reclusos em casa há anos, proibidos de ter contato com outras pessoas e de saírem pelo portão. De acordo com ele, o mundo é horrível e corrupto, e as pessoas são impuras, degeneradas.
Durante o dia, então, a família trabalha no próprio quintal fabricando o veneno para ratos que Gabriel, único que pode sair, leva para vender nas redondezas. Ao entardecer ele volta, com presentes para a esposa, com a comida que acha que a família deve comer e com rígidas atividades de educação domiciliar para os filhos.
Isolados e alienados da realidade que existe do outro lado dos portões, mãe e filhos vivem sob permanente estado de controle e vigilância, sem nem imaginar que na rua, durante suas saídas de vendedor, Gabriel leva uma vida um pouco diferente daquela imposta dentro de casa.
Dedicado a criticar as hipocrisias do tal homem de bem, pai de família, o longa se apresenta extremamente atual.
NOTÍCIAS
NETFLIX ANUNCIA INVESTIMENTO NO SETOR AUDIOVISUAL MEXICANO
A Netflix anunciou nos últimos dias um investimento de US$1 bilhão na indústria audiovisual do México, valor que deverá ser aplicado nos próximos quatro anos para fortalecer a produção local.
A notícia foi revelada pelo CEO da plataforma, Ted Sarandos, durante uma coletiva de imprensa ao lado da presidenta mexicana Claudia Sheinbaum: “Presidente Sheinbaum, na Netflix, compartilhamos sua visão de um México vibrante e próspero, repleto de crescimento e oportunidades. Queremos fazer parte dessa realidade”, declarou Sarandos. Reportagem da Rolling Stone.
Contato e PIX: eraumavez.americalatina@gmail.com