ERA UMA VEZ NA AMÉRICA LATINA #13
“Marte Um” representará o Brasil no Oscar 2023 I “Memoria” na MUBI l Governo Bolsonaro ameaça interromper o cinema nacional I Destaques de Gramado 2022
“A esperança pertence à vida, é a própria vida se defendendo.”
Essa citação do livro “O Jogo da Amarelinha”, que circulou pelas redes sociais no último dia 26, em ocasião dos 108 anos do nascimento de Julio Cortázar, um dos mais importantes autores latino-americanos, talvez sintetize bem a essência de Marte Um, segundo longa-metragem dirigido e roteirizado pelo mineiro Gabriel Martins - primeiro solo, sem a parceria de Maurílio Martins, com quem fez No Coração do Mundo (2019).
Escolhido para representar o Brasil na disputa por uma indicação ao Oscar 2023 de Melhor Filme Internacional, o longa tem emocionado o público com a história de sonhos e perrengues dos Martins, uma família preta e de classe média baixa da periferia de Contagem, região metropolitana de Belo Horizonte.
É outubro de 2018. A notícia da eleição de Bolsonaro na tevê, fogos de artifício rasgando o céu nas redondezas da Grande Belo Horizonte… O dia seguinte amanhece e a vida segue normal para os Martins. Ou aparentemente normal, já que demora pouco tempo até que os sintomas do mal-estar social que avançou sobre o país nos últimos anos alcancem o cotidiano dessa típica família brasileira.
Tércia (Rejane Faria), matriarca e pilar emocional dos Martins, trabalha como diarista e começa a ver a procura por seus serviços diminuindo. Depois de cair numa pegadinha de televisão, ela passa a acreditar piamente que está amaldiçoada, tomando para si a culpa da maré de azar que acomete toda a família. Wellington (Carlos Francisco, de “Bacurau”), o pai, porteiro há anos num condomínio de elite, é aficionado por futebol e está há um bom tempo sem beber. Ele deposita em Deivinho (Cícero Lucas), o filho caçula, a expectativa de mudar de vida: seu maior desejo é ver o garoto virando jogador do Cruzeiro.
Deivinho até gosta de futebol, mas tem seus próprios sonhos: quer ser astrofísico e participar da missão Marte Um, que pretende colonizar o planeta vermelho em 2030. Um sonho que ele só tem coragem de compartilhar com a irmã mais velha, Eunice (Camilla Damião). Estudante de direito numa universidade federal, a jovem dá aulas de reforço para ganhar algum dinheiro enquanto não se forma e planeja ir morar com sua namorada (Ana Hilário), mesmo não sabendo ainda como falar com os pais sobre tal decisão.
Colocando gente feita de carne, osso e Brasil na tela, Marte Um mantém a tradição da Filmes de Plástico (produtora responsável pelo filme, criada em 2009 por André Novais Oliveira, Gabriel Martins, Maurílio Martins e Thiago Macêdo Correia) de contar histórias de pessoas comuns vivendo a vida. Pessoas que atravessam conjunturas equilibrando os pratos do dia a dia, que erram, acertam, enfrentam dificuldades mas também carregam sonhos.
E vem daí a beleza do filme que tem tirado lágrimas de tanta gente: do comum, do que gera identificação genuína. Da grandiosa simplicidade com que Gabriel Martins revira nossos afetos contando dos afetos e dos conflitos de uma família atravessada por dores e sabores de Brasil.
Num realismo intimista que fala do país para o país, Martins leva às telas um recorte de Brasil preto e periférico que ainda hoje raramente vira cinema de ficção: o Brasil da trabalhadora informal, do SUS, da universidade federal, do futebol de bairro, do menino que quer chegar no espaço, da menina querendo alugar seu primeiro apartamento com a namorada, do churrasquinho em família no fim de semana.
Sem dúvidas temos um filme sobre a vida se defendendo. E o temos graças à sensibilidade ímpar que Martins possui para enxergar gente e retratar gente.
Aliás, importante ressaltar que por trás das câmeras o filme também diz muito sobre o cinema nacional dos últimos anos. Produtor do filme, Thiago Macêdo Correia lembra que Martins o procurou com a ideia para Marte Um quando o país ainda estava sob o comando de Dilma Rousseff, um período de prosperidade, incentivo e investimentos na cultura. “O filme foi produzido graças a um fundo público de 2016 voltado para diretores negros e narrativas de temática negra com o intuito de levar às telas cineastas de grupos minoritários. Obviamente, esse fundo não existe mais.”
Na época, esse mesmo edital de longa afirmativo para produção de longa-metragem independente e de baixo orçamento contemplou outros dois importantes filmes: Cabeça de Nêgo (disponível no Globoplay/ entrevista com o diretor aqui), de Déo Cardoso, e Um Dia com Jerusa (disponível na Netflix), de Viviane Ferreira. Com a escassez de políticas de incentivo, a diversidade enfrenta grandes dificuldades para existir no cinema brasileiro.
Marte Um está em cartaz.
ESTREOU NOS CINEMAS
A Teoria dos Vidros Quebrados
Um corretor de seguros corre contra o tempo numa pequena cidade fronteiriça cheia de gente irritada para descobrir quem está por trás das carcaças de carros queimados que avançam sobre a paisagem, espalham a desordem, tornam sua estadia na região enlouquecedora e colocam em risco seu emprego. Essa seria uma boa sinopse de filme da Sessão da Tarde, e talvez seja uma boa apresentação para a anedota criada pelo uruguaio Diego “Parker” Fernández, uma anedota sobre condutas humanas.
A Teoria dos Vidros Quebrados venceu os prêmios de Melhor Filme e Melhor Filme Júri Popular na mostra Longas-metragens Estrangeiros do Festival de Gramado em 2021, representou o Uruguai no Oscar 2022 e estreou no circuito comercial brasileiro em 18 de agosto.
Crítica completa do filme aqui
Clara Sola
Estreou em 11 de agosto o longa Clara Sola, representante da Costa Rica no Oscar 2022 e grande vencedor da 45ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.
Marcando a estreia de Nathalie Álvarez Mesén na direção de longas-metragens, Clara Sola conta a história de uma mulher introvertida de 40 anos, moradora de um vilarejo remoto da Costa Rica, que começa a experimentar um despertar sexual e místico que a libertará das convenções sociais e religiosas.
PARA ASSISTIR EM CASA
MUBI
Memoria
Escrito e dirigido pelo tailândes Apichatpong Weerasethakul e estrelado pela atriz britânica Tilda Swinton, Memoria representou a Colômbia no Oscar 2022.
No filme, disponível para assinantes da MUBI desde 5 de agosto, Swinton é Jessica, uma cultivadora de orquídeas escocesa que vai visitar a irmã doente em Bogotá. Durante sua estadia, ela faz amizade com uma arqueóloga francesa, responsável por monitorar a construção de um túnel, e com um jovem músico. Os barulhos da obra do túnel interrompem seu sono por dias.
PRIME VIDEO
Notícias de um Sequestro
Adaptada do livro homônimo de Gabriel García Márquez, a série Notícias de um Sequestro, uma produção original Prime Video, recria os resultados das investigações do autor e jornalista colombiano sobre o horror sofrido pelas dez figuras públicas sequestradas em 1990 por narcotraficantes liderados por Pablo Escobar.
A série, dividida em seis episódios, é dirigida pelo chileno Andrés Wood (Machuca, 2004/ Aranha, 2019) e tem o cineasta Rodrigo García, filho de García Márquez, como um de seus produtores.
STAR+
La Civil
Coproduzido por México, Bélgica e Romênia e dirigido pela romena Teodora Mihai, que também divide o roteiro com o mexicano Antonio de Rosario, La Civil é baseado em fatos reais e conta a história de uma mãe que teve a filha adolescente sequestrada no norte do México. Sem apoio das autoridades para encontrar a garota, essa mãe decide agir por conta própria.
Tendo os desaparecimentos forçados no México como temática principal, tal como os ótimos e recentes Noche de Fuego (Netflix) e Sin Señas Particulares (Prime Video), La Civil recebeu o Prêmio Coragem na seção Un Certain Regard, na edição 2021 do Festival de Cannes.
Em entrevista ao portal El Universo, a atriz Arcelia Ramírez, protagonista do filme, comenta sobre sua personagem: “Ela pensa como uma mulher renegada, dependente do ex-marido, abandonada, e vai tomando força a partir da tragédia que vive, para terminar como uma ativista, investigando o que pode ter acontecido com sua filha”.
NOTÍCIAS
GRAMADO
Aconteceu entre 12 e 20 de agosto a 50ª edição do tradicional Festival de Gramado. Neste ano, o grande vencedor do evento foi o longa acreano Noites Alienígenas, de Sérgio de Carvalho, com cinco troféus: melhor longa-metragem brasileiro, ator (Gabriel Knoxx), ator coadjuvante (Chico Diaz), atriz coadjuvante (Joana Gatis) e troféu da crítica.
Inspirado no romance homônimo publicado em 2011 pelo próprio diretor, o filme é ambientado em Rio Branco, capital acreana, entre os limites do urbano e da Floresta Amazônica, e trata dos impactos causados pela chegada das facções do Sudeste na juventude local. Essa foi a primeira vez que uma produção do Acre ganhou o principal prêmio em Gramado.
“Nunca mais este festival será igual, porque hoje ele abriu uma porta e reconheceu algo que não tem volta nesse país. A gente é fruto de dinheiro descentralizado, é fruto de política que chega lá na ponta, na borda, nas beiras desse país que achou, durante muito tempo, que só uma parte dele produzia conteúdo. Isso não é verdade”, discursou a produtora Karla Martins.
Na competição de curtas, Fantasma Neon venceu em quatro categorias: melhor filme, direção, ator (Dennis Pinheiro) e troféu da crítica, além da aquisição do Canal Brasil. Dirigido por Leonardo Martinelli, o curta é um musical que trata da precarização do trabalho no Brasil através do dia a dia de seu protagonista, um entregador de aplicativos que sonha em comprar sua própria motocicleta para viajar pelo Brasil. Silvero Pereira (o Lunga, de Bacurau) compõe o elenco.
Já o filme 9, coprodução entre Uruguai e Argentina, ficou com os prêmios de Melhor Longa Estrangeiro, Melhor Longa Estrangeiro (júri da crítica) e Melhor Ator. Na trama, um jovem jogador de futebol bem-sucedido, que sofre com o assédio da mídia e a pressão que o cerca, procura escapar do inferno em que sua vida se tornou.
Marte Um recebeu quatro Kikitos - Prêmio Especial do Júri, Melhor Roteiro (Gabriel Martins, diretor do filme), Música e o troféu do júri popular. Outro destaque nacional foi A Mãe, vencedor dos prêmios de Melhor Direção, para Cristiano Burlan, e Melhor Atriz, para Marcélia Cartaxo. No filme, Cartaxo interpreta uma mulher que procura seu filho que pode ter sido assassinado por policiais militares durante uma ação na vila onde moram. A Mãe deve estrear em 10 de novembro nos cinemas.
NÚMEROS DO CINEMA ARGENTINO
De acordo com uma análise realizada pelo portal Otros Cines, apenas dois filmes argentinos figuram na lista de 30 filmes mais assistidos nos cinemas argentinos nos últimos 25 anos. São eles: Relatos Selvagens (em 7º lugar) e O Clã ( em 28° lugar).
No topo da lista, quatro animações estadunidenses e o clássico Titanic. Além de demonstrar que o gênero familiar tem apelo massivo nas salas de cinema do país, a lista é sintomática, como já era de se imaginar, sobre as dificuldades que os filmes do continente enfrentam diante do domínio das produções hollywoodianas para conseguir fazer bilheteria em seus próprios países. Confira a matéria completa aqui.
Ler a edição #10: [ENTREVISTA] Marina Rodrigues, produtora executiva focada em políticas públicas no audiovisual, fala sobre os problemas de distribuição e exibição enfrentados por filmes latino-americanos.
LOCARNO
Foram anunciados em 13 de agosto os vencedores da 75ª edição do Festival de Cinema de Locarno, considerado um dos principais festivais de cinema autoral do mundo. Neste ano, algo chamou atenção: o protagonismo latino-americano no festival.
O brasileiro Regra 34, de Julia Murat, recebeu o Leopardo de Ouro de Melhor Longa, prêmio máximo do evento. Protagonizado por Sol Miranda, o filme conta a história de Simone, uma jovem negra que pagou a faculdade de Direito trabalhando como camgirl (vendendo performances de sexo online). Aprovada num concurso da Defensoria Pública, ela foca seu trabalho em ajudar vítimas de violência de gênero, enquanto suas próprias experiências sexuais a levam a transitar pela linha tênue entre o consentimento e a violência.
Da Costa Rica vem Tengo Sueños Eléctricos, de Valentina Maurel, vencedor nas categorias de Melhor Direção, Melhor Atriz e Melhor Ator. Em seu primeiro longa-metragem, Maurel apresenta uma adolescente que, diante do divórcio dos pais, decide viver com o pai, com quem mais se identifica. Ao mesmo tempo, ela experimenta seu despertar sexual. Vale lembrar que o cinema feito por mulheres na Costa Rica tem se destacado nos últimos anos com filmes como Clara Sola, de Nathalie Álvarez Mesén, Ceniza Negra (Prime Video), de Sofía Quirós Ubeda, e O Despertar das Formigas (Google Play), de Antonella Sudasassi.
Já o Leopardo de Ouro de Melhor Curta-metragem Internacional foi para o cubano Soberane (Sovereign), dirigido e protagonizado por Wara, indígena não-binárie de Fortaleza, que estuda na EICTV (Escuela Internacional de Cine y Televisión de Cuba) desde 2018. No curta, Wara explora a jornada de Hakan, a partir da decisão da personagem de viver em Cuba e deixar para trás o Brasil, seu país de origem. Em CineVitor
OSCAR
O Uruguai foi o primeiro país latino-americano a anunciar seu representante na disputa por uma indicação ao Oscar 2023 de Melhor Filme Internacional. Em 19 de agosto, o longa O Empregado e o Patrão, dirigido por Manuel Nieto Zas e atualmente disponível no catálogo da Netflix Brasil, foi escolhido para se inscrever na competição.
Dois jovens protagonizam a trama. Um deles é herdeiro de uma grande fazenda de soja na fronteira entre Uruguai, Brasil e Argentina e se divide entre cuidar dos negócios e tentar encontrar um diagnóstico para a saúde debilitada de seu bebê. O outro tem 18 anos e aceita trabalhar na fazenda para poder sustentar sua família. Um acidente no trabalho amarra o destino desses dois homens.
PERLIMPS
Foi divulgado o trailer da animação Perlimps, novo trabalho de Alê Abreu, indicado ao Oscar por O Menino e o Mundo em 2016. Na trama, Claé e Bruô são espiões de reinos rivais que partem juntos em uma missão para encontrar os Perlimps, criaturas poderosas que podem salvar o mundo em que vivem.
O filme é produzido por Laís Bodanzky, Luiz Bolognesi e Ernesto Soto Canny junto a Buriti Filmes. Sony Pictures, Globo Filmes e Gloob assinam a coprodução.
GOVERNO BOLSONARO AMEAÇA INTERROMPER O CINEMA NACIONAL
O projeto do plano orçamentário de 2023 apresentado pelo governo Bolsonaro ameaça seriamente o futuro do cinema nacional. Nele está prevista a extinção da Condecine (Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional), taxa cobrada junto à indústria de telefonia e audiovisual.
Hoje, essa arrecadação é o que alimenta o Fundo Setorial do Audiovisual, operado pela Ancine (Agência Nacional de Cinema) para financiar produções de filmes, séries e games brasileiros. Uma taxa que é cobrada de empresas que faturam com o audiovisual, se transforma em verba para o Fundo Setorial do Audiovisual e garante o investimento em novas e diversas produções através da Ancine, órgão de fomento e regulação.
Na prática, portanto, o fim da Condecine significaria o fim da cadeia produtiva - principalmente para as produções independentes, que dependem diretamente de programas de fomento. No Portal Terra