ERA UMA VEZ NA AMÉRICA LATINA #19
ENTREVISTA: “Descentralizar a produção é criar no imaginário esses muitos Brasis que nós somos”, diz Sérgio de Carvalho, diretor do acreano Noites Alienígenas
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Ambientado numa periferia amazônica, nos limites entre a Amazônia urbana e a floresta, Noites Alienígenas, de Sérgio de Carvalho, gira em torno de Rivelino (Gabriel Knoxx), Sandra (Gleici Damasceno) e Paulo (Adanilo Reis), três amigos de infância que vivem em Rio Branco e são diretamente impactados pela mudança da rota do tráfico que estabeleceu organizações criminosas do sudeste nas fronteiras com a Bolívia e o Peru.
Nos últimos dez anos, a violência urbana moldada pelo conflito entre facções quase triplicou o assassinato de crianças e jovens no estado do Acre. O cotidiano dos protagonistas do filme traça um panorama dessa nova realidade. Rivelino trabalha vendendo drogas e percebe o “mercado” mudando pela influência das facções; Paulo, um jovem indígena dependente químico, sofre as consequências diretas do aumento da violência na região; e Sandra, uma jovem mãe solo que sonha em poder deixar Rio Branco para estudar, resiste como pode à infiltração da violência em seu entorno.
O filme, uma adaptação de um livro homônimo escrito pelo próprio diretor, foi o grande vencedor do Festival de Gramado 2022, onde levou os Kikitos de Melhor Filme, Ator (Gabriel Knoxx), Atriz Coadjuvante (Joana Gatis), Ator Coadjuvante (Chico Diaz), Menção Honrosa ao ator Adanilo Reis e o prêmio do Júri da Crítica. Além de ter marcado a história de Gramado por ter sido o primeiro filme acreano a competir no festival, Noites Alienígenas se transformou num marco do cinema nacional por ser o primeiro filme acreano a estrear em circuito comercial por todo o país. Tal trajetória o levou a ser um dos candidatos a representar o Brasil na competição por uma indicação ao Oscar 2024 de Melhor Filme Internacional.
Noites Alienígenas foi lançado nos cinemas em março deste ano e atualmente está disponível na Netflix.
A seguir você acompanha a entrevista de Sérgio de Carvalho, diretor e roteirista do filme
Sérgio, você poderia comentar um pouco sobre a escolha dos três protagonistas?
Os três protagonistas são todos jovens, a Gleici Damasceno, o Gabriel Knoxx e o Adanilo… Cada um teve uma história, uma relação com o filme, mas eu sou muito feliz, acho que foi muito acertada a escolha dos atores. O Gabriel veio por meio de um chamamento que eu fiz aqui no Acre, em Rio Branco, em busca do personagem Rivelino. Era um menino ligado ao rap, que veio fazer o teste e foi um teste incrível. Ele é muito intuitivo. Não tinha nenhuma experiência audiovisual ainda, mas quando fez o teste eu tinha certeza que era ele porque foi muito impactante. A Gleici eu já conhecia até antes do BBB (Big Brother Brasil), acompanhei quando ela fazia curso de teatro aqui e achei que a personagem tinha muito a ver com ela e que ela daria conta. Também foi uma escolha muito acertada. Ela teve uma super entrega para o papel e foi um convite direto. E o Adanilo foi indicação de um amigo de Manaus, porque eu não queria que fosse um ator sem experiência, pelo personagem, pela complexidade emocional que é interpretar um indígena e dependente químico. Imaginei que precisasse mesmo ser um ator com alguma bagagem, com alguma experiência. Então tive a indicação do Adanilo, que também deu muito certo. Ele teve uma entrega absoluta pro personagem. Era um desafio esse personagem, para não deixá-lo caricato, então acho que o Adanilo acertou muito o tom.
Por que inserir elementos fantásticos num filme realista?
Eu acredito que às vezes, por meio da fantasia, da abstração, da fabulação, como diz o Adirley Queirós (diretor de Branco Sai, Preto Fica), a gente consegue falar muito mais da realidade. Acho que não é de jeito nenhum escapismo, acho que nesse sentido é uma fantasia, um realismo mágico que te traz pra realidade, que não te coloca pra fora dela. Acho isso importante. Não dava pra falar de um filme sobre facção, sobre morte e fugir dessa realidade. Acho que a gente acerta a mão quando o realismo mágico nos ajuda a mergulhar na realidade.
Noites Alienígenas se tornou o primeiro filme acreano a estrear em circuito comercial nacional, mas o Acre com certeza produz obras que a grande maioria do público desconhece justamente por não estrearem nacionalmente. O que tem sido produzido no estado? Que tipo de histórias estão sendo contadas? O que mais te chama atenção na produção acreana contemporânea?
O Acre tem uma tradição de cinema desde a década de 1970, uma galera que sempre trabalhou com audiovisual num outro modelo de produção, em uma outra realidade. Hoje são todos senhores que continuam na sua militância pelo audiovisual. Também temos uma produção que considero muito importante que é o cinema indígena que é feito aqui. A gente sempre teve realizadores indígenas, por causa do programa Vídeo nas Aldeias, do Vincent Carelli, que formou diversos realizadores indígenas, como Zezinho Yube e o Bebito Ashaninka, que têm uma obra expressiva que já circulou em muitos festivais. Acho que é muito potente esse cinema feito pelos realizadores indígenas. Tem toda uma geração nova aqui e urbana também que está se dedicando ao audiovisual. Saiu agora um curta lindo que se chama “Maués” (“Maués, a Garça”), sobre um artista acreano, da Isabelle Amsterdam. Tem muita coisa boa sendo produzida e acredito que com a “Paulo Gustavo” (Lei Complementar nº 195, de 8 de julho de 2022, que regulamenta o apoio financeiro da União a Estados, DF e Municípios para garantir ações emergenciais para mitigar efeitos da Covid-19 ao setor cultural) essa potência tende a crescer.
Você também é diretor de um festival de cinema de fronteira (Pachamama) e o próprio Noites Alienígenas carrega em si a questão das fronteiras (da floresta e do urbano, do contemporâneo e do ancestral, da personagem que cogita estudar num país vizinho, do político, do econômico, dos modos de vida tradicionais e da religião, do avanço da violência entre estados...). A complexidade dos territórios fronteiriços te interessa em particular? Qual a influência das fronteiras no seu trabalho? Você prefere enxergar essa fronteiras como zonas de encontros ou de limites/divisões?
Eu adoro o tema das fronteiras, acho que é um tema que está em toda a minha obra. A fronteira entre a cidade e a floresta, as fronteiras existenciais também. Essa ideia que acaba uma coisa e começa outra mas às vezes essas fronteiras são transcendidas…Então acho que o tema da fronteira é muito simbólico, talvez por morar num estado de fronteira. Como diz o Moisés Ashaninka, aqui antes era tudo uma coisa só, depois vieram os brancos e disseram que um lado é Peru, outro lado é Bolívia e outro lado é Brasil. Muitas culturas foram divididas com essas fronteiras políticas e geográficas que são impostas. Acho que essas fronteiras também são metáforas sociais, existenciais. Então é um tema com o qual eu realmente tenho muita ligação. Acho que nada cabe em isso aqui é daqui e aquilo ali é de lá. Sempre fui uma pessoa de romper e cruzar muitas fronteiras, então é um tema que acho fundamental desde as fronteiras das colonizações às fronteiras que o narcotráfico tem rompido criando uma nova rota de tráfico pela Amazônia. É um tema urgente a ser falado e pensado.
Os cinemas latinos (principalmente dos países vizinhos do Acre, Peru e Bolívia) te influenciam de alguma forma?
Com certeza sou muito influenciado pelo cinema produzido na América Latina, acredito que o modelo de produção e de linguagem deles (os países vizinhos) tem muito mais a ver aqui com a gente que está nas periferias desse Brasil, nas fronteiras do Brasil. Gosto muito do cinema latino. Estive à frente do Festival Pachamama por dez anos, então tive a oportunidade de conhecer muitos diretores, uma riquíssima cinematografia que a gente conhece muito pouco no Brasil.
Que tipo de desafios Noites Alienígenas enfrentou para romper a fronteira imposta pelo eixo Rio-São Paulo e ser o que é hoje?
Os desafios foram muitos. Desde o ponto de vista de orçamento, que tem a questão do custo amazônico…filmar na Amazônia é muito caro. Precisamos trazer caminhão de equipamento do sudeste porque aqui ainda não tinha uma locadora de equipamentos. Então tem desde a parte do custo, do orçamento, às vezes até a falta de alguns profissionais técnicos também que a gente ainda não tem no Acre. Então foram muitos os desafios. Mas isso também nos deu liberdade criativa. Pensei “estamos fazendo um filme no Acre, de baixo orçamento, vamos fazer um filme que a gente acredita, que a gente quer fazer”. Teve isso também, uma certa liberdade. As dificuldades e as condições em que filmamos nos permitiram fazer o filme que a gente acreditava, com a linguagem que a gente acreditava, com muita entrega de toda a equipe, de todos os atores. Foi um processo muito bonito e muito intenso.
Qual o peso de ter seu filme como um marco do cinema nacional?
É uma responsabilidade muito grande. Eu senti isso quando ganhamos Gramado e comecei a receber muitas mensagens de realizadores do norte se sentindo representados pelo filme. Acho que tem que ter muito pé no chão também, saber de qual tempo e espaço que a gente tá falando, de onde esse filme saiu, em quais condições, de que maneira. Acho que ele traz muito um senso de responsabilidade e um desejo de que muitos outros Noites Alienígenas venham a acontecer. Tivemos agora um curta de Rondônia que ganhou Gramado também e a participação de um outro filme do Tocantins… [Ler GRAMADO 2023/ EDIÇÃO #18] Então espero que muitos filmes do norte do Brasil possam acontecer, possam entrar em circuito, possam traçar o caminho que o “Noites” traçou. Que a gente consiga ver essa cinematografia tão potente, tão inovadora que é a do norte ter condições tanto de produção quanto de distribuição. Que o Brasil consiga se ver mais nas telas.
Qual a importância de descentralizar a produção cinematográfica no Brasil?
É fundamental. Glauber Rocha falava que um país sem cinema é como uma casa sem espelho. Então não podemos ter um espelho único que reflete uma única imagem do Brasil. Tem que ser uma casa com muitos espelhos, para que o Brasil possa se ver por completo. Descentralizar a produção é ampliar essa ideia de identidade nacional diversa, plural, criar no imaginário esses muitos Brasis que nós somos.
Noites Alienígenas esteve em cartaz nos cinemas e agora está disponível no catálogo da Netflix. Para você, as diferentes formas de exibição transformam o filme de alguma maneira?
Realmente, são muito distintas as janelas. Tem a janela dos festivais, depois a sala comercial e agora a do streaming. Então eu tive retornos muito diversos também. Quando chegou na Netflix, que falo que é nossa “Tela Quente” de hoje, eu senti uma popularização muito grande, até alguma democratização ao acesso. Mas acho que ainda não tem nada como a sala de cinema. Acho que a gente precisa firmar muito a sala de cinema. Desde a pandemia o Brasil ainda não recuperou seu público. Acho que a importância da cota do cinema nacional, a cota de tela, é fundamental para que os filmes brasileiros possam ser vistos cada vez mais. É muito desleal a concorrência com os filmes gringos. Que a gente possa se ver cada vez mais e não tem nada como as salas de cinema. [Ler sobre a Cota de Tela na EDIÇÃO #10]
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