ERA UMA VEZ NA AMÉRICA LATINA #28
"Levante": primeiro longa de Lillah Halla trata de justiça reprodutiva no Brasil/ Os curtas “Nada Disso Tudo” e “O Nosso Pai” estreiam no streaming/ Goya e Berlim 2024
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UM LEVANTE NO CINEMA BRASILEIRO PELA DESCRIMINALIZAÇÃO DO ABORTO
Aos 17 anos, prestes a conseguir uma bolsa que pode alavancar sua carreira de jogadora de vôlei internacionalmente, Sofia (Ayomi Domenica) descobre uma gravidez indesejada. Sem a menor intenção de seguir adiante com uma gestação que interromperia seus sonhos e planos e a faria perder a oportunidade de sua vida, a jovem decide abortar. Tal decisão, no entanto, esbarra nas leis de proibição do Brasil e na crescente de autoritarismo que tomou conta das relações cotidianas nos últimos anos.
De repente, a garota atleta, melhor jogadora do time Capão Leste, o C.Leste, acostumada a ter autonomia sobre seu corpo, se depara com todo um perverso cenário de controle - que é ainda mais perverso para uma garota preta e periférica. Logo de início, sabendo da impossibilidade de poder interromper a gravidez legalmente, a jovem se desespera, procura ajuda sem muita orientação na internet e acaba chamando atenção de um grupo conservador que assume a missão de dissuadi-la da ideia do aborto, nem que para isso seja necessário persegui-la e ameaçá-la.
Como abortar de maneira clandestina sem colocar em risco sua vida, então? Como conseguir o dinheiro que lhe garantiria alguma segurança nesse processo? Como contornar a vigilância, os julgamentos e opiniões não solicitados que chegam até mesmo de completos desconhecidos? Como não acabar presa por tomar uma decisão sobre o que fazer com seu corpo?
É com o apoio do pai (Rômulo Braga), da treinadora (Grace Passô) e de todo seu time de vôlei que Sofia, protagonista de Levante, primeiro longa-metragem de Lillah Halla (diretora do curta Menarca,de 2020), se mantém firme diante dos dilemas e opressões que atravessam o momento mais delicado de sua vida, recusando a maternidade compulsória.
“Foi em 2014/2015 [que nasceu a ideia de Levante], quando eu, a María Elena Morán, corroteirista do filme, e a Clarissa [Guarilha], que é produtora, estivemos na fronteira do Brasil com o Uruguai. No momento em que a gente pisa na fronteira e se dá conta dessa situação que poucos anos antes tinha mudado, porque o Uruguai descriminalizou o aborto, reduzindo-o a praticamente zero entre as causas de morte de pessoas com útero. Essa fronteira do Brasil com o Uruguai é muito porosa em todos os outros assuntos, então foi muito marcante pra gente estar ali e entender que para todo o resto não fazia diferença de que lado da rua você morava. Era fluido, uma fronteira fluida. Acho que fronteira é um assunto bem importante nesse filme em vários sentidos, que as fronteiras sejam fluidas também é um assunto bem importante no filme. De muitas maneiras nós estamos falando da violência dessas cartografias políticas criadas com interesses e muito binárias. Essa situação binária é: no Uruguai, aborto descriminalizado; no Brasil, 4ª maior causa de morte entre pessoas com útero. Então começamos a investigar e conversar com pessoas da militância do lado uruguaio, entrevistar nos hospitais sobre como tinha sido esse processo de mudança, até um pouco como uma curiosidade de como seria essa transformação pra gente no Brasil. A partir daí a gente foi puxando os fios da história e ela foi nascendo. O vôlei também tem muito esse lugar além do corpo em jogo, da corpa em jogo, tem muito esse lugar dos dois lados separados por uma fronteira que logo no filme também se dissolve. A gente sempre fala que o filme foi se transformando ao longo desses oito anos como o próprio Brasil ia se transformando”, comentou Halla durante a coletiva de imprensa de lançamento do longa.
Na diversidade e na fluidez dos corpos, identidades, gêneros, experiências e afetos, a diretora ambienta o cotidiano de sua protagonista, com domínio sobre o destrinchar das várias nuances envolvidas na questão da justiça reprodutiva no Brasil. Assim, primeiro conhecemos a rotina de Sofia, e aos poucos acompanhamos seu dia a dia ser invadido pelo conservadorismo autoritário que se infiltra ao seu redor, coagindo, aterrorizando, até chegarmos na cena clímax do filme. Uma cena forte, de colisão de forças, catártica sobre as violências que são impostas à personagem.
Para a diretora, um grande desafio era filmar a violência da cena a partir do olhar de quem ataca: “É uma cena que desde o roteiro aterrorizava, e ao mesmo tempo a gente sabia que era muito importante. É uma cena que nasce em 2019 com a eleição de Bolsonaro e toda legitimação de violência, de perseguição, de olho por olho e dente por dente. A gente sabia que teria que chegar aí. Mas como fazer isso sem reiterar os fetiches na violência sofrida por essas corpas era parte do processo, como criar uma possibilidade imagética de contra-ataque e que o ódio seja o ódio do outro, a violência do outro que invade esse espaço”.
Ainda que não ignore as gravidades da violência, Levante passa longe do pessimismo e se autodetermina como um filme coletivo, que retira energia do fortalecimento do coletivo, na não submissão, no (re)agir. Dentro e fora das telas. Nesse sentido, a trilha sonora desponta como um dos elementos fundamentais na formação de alma e tom da obra. De acordo com Halla, o trabalho de composição e curadoria de Maria Beraldo, que contou participação especial de Badsista e Juçara Marçal, se baseou em reunir vozes distintas, muito a partir do que o elenco escutava e musicando letras do próprio elenco num alinhamento temático/estético.
“Esse filme tem vários públicos, mas o público do Celeste é o nosso público-alvo assim num lugar de encontro, mesmo de encontro de possibilidades de vivência, de utopia e de construções. [...] Então eu queria conhecer cada uma das pessoas que estavam ali e ouvir o que elas ouviam”, explicou a diretora.
Já sobre os desafios de colocar no mundo um filme como Levante, Halla desabafou: “Não é fácil ser uma mulher fazendo um primeiro filme na América Latina, né? Não fosse o impeachment, fechamento do Ministério da Cultura, desgoverno 2018 e pandemia, também teríamos demorado; não tanto, mas teríamos demorado. Naquela época que a gente começou existia uma agência de cinema, a gente tinha editais [que depois ficaram congelados] Mas é isso, também é um universo o cinema como indústria. Ele é muito patriarcal, ele é muito atravessado por tudo que a gente tá falando dentro da tela. E aí demorou tanto para fazer esse filme que de alguma maneira eu acho que fui radicalizando um pouco mais esse caminho. Lá atrás, por exemplo, nem tinha [o personagem] pai, e eu cansei de ouvir gente, não só no Brasil, dizer que esse projeto interessava pouco a este ou aquele produtor e financiador porque era um assunto de menina. E aí a gente começa a hackear um pouco a coisa também, entendeu? Como é que eu torno essa história, uma história de todos? Ai o pai vai surgindo e ganhando espaço, e isso vai mudando a recepção do produtor hegemônico [...] Os créditos são imensos, né? Porque é isso, a gente conseguiu um pouquinho aqui, um pouquinho ali”.
Levante estreou em 22 de fevereiro e segue em cartaz.
NOS CINEMAS
UTOPIA TROPICAL
Dirigido por João Amorim, o documentário Utopia Tropical convida à reflexão sobre questões que moldaram a América Latina. Nele, o linguista e ativista político estadunidense Noam Chomsky e o diplomata brasileiro Celso Amorim analisam a ascensão e queda dos regimes de esquerda latino-americanos.
NO STREAMING
FILMICCA
NADA DISSO TUDO
Nada de Todo Esto (Nada Disso Tudo, em português) é um curta-metragem adaptado do conto homônimo da escritora argentina Samanta Schweblin. Sob a direção de Francisco Cantón e Patricio Martínez, o filme acompanha uma tarde entre mãe e filha (Érica Rivas, de Relatos Selvagens, e sua filha Miranda de la Serna), duas mulheres que há anos têm como passatempo sair de carro por bairros mais nobres para admirar mansões. Nessa tarde, porém, o carro atola no impecável jardim de uma das casas. A filha tenta encontrar uma solução para o imprevisto, mas a mãe parece irremediavelmente obcecada pela casa e pela vida dos que vivem ali, por tudo aquilo que nunca fez parte de sua realidade.
Nada Disso Tudo concorreu a Melhor Curta-metragem no Festival de Cannes 2023.
NETFLIX
TÓTEM
Tótem, representante do México no Oscar 2024, estreou em 1º de março no Brasil, direto na Netflix.
Dirigido por Lila Avilés (A Camareira, 2018) e dedicado a sua filha, o filme acontece dentro de uma casa cheia de gente, numa reunião familiar onde a pequena Sol (Naíma Sentíes), de sete anos, observa como funcionam as relações ao seu redor.
Junto dos tios, tias e primos, na casa do avô, Sol prepara uma festa de aniversário surpresa para seu pai, que está enfrentando um estágio avançado de câncer. Conforme o dia acontece, o amor passa a dividir espaço com os medos e preocupações que vêm à tona.
SIMÓN
Simón, de Diego Vicentini, tem como protagonista um jovem estudante que decide pedir asilo político em Miami depois de ser preso e torturado em protestos na Venezuela.
O filme virou foco de polêmica quando Vicentini denunciou supostas irregularidades no processo de seleção que escolheria o candidato venezuelano ao Oscar 2024 de Melhor Filme Internacional. De acordo com o diretor, parte do comitê de seleção, tradicionalmente composto por integrantes do grêmio de cineastas venezuelanos, em 2023 foi formado por pessoas desconhecidas. Vicentini também alegou ter recebido informações de que os membros do comitê não estariam dispostos a escutar argumentos a favor de Simón. Outra reclamação do diretor diz respeito a um conflito de interesses gerado pela participação de Ray Ugencio no tal comitê. Ugencio foi assistente de direção de La sombra del Sol, o filme que acabou eleito como representante da Venezuela no Oscar.
Apesar de não ter sido escolhido para o Oscar e de ter sido chamado por muitos de “o filme que não querem que você veja”, Simón foi eleito pela Academia de las Artes y las Ciencias Cinematográficas de Venezuela como representante venezuelano na 38.ª edição dos Prêmios Goya. Além disso, no fim de 2023, o longa, lançado em 34 salas por todo o país, se tornou a maior bilheteria de filme nacional dos últimos seis anos na Venezuela.
MUBI
EL ROSTRO DE LA MEDUSA
Um dia, perto dos trinta anos, Marina (Rocío Stellato) percebe que seu rosto mudou de repente. Quem ela é agora, então? Dirigido por Melisa Liebenthal, com um quê de kafkiano, El Rostro de la Medusa procura refletir sobre identidade e imagem.
MEDIANERAS
Um dos grandes sucessos do cinema argentino contemporâneo agora está disponível na Mubi. Dirigido por Gustavo Taretto e protagonizado por Javier Drolas e Pilar López de Ayala, Medianeras (2011) conta uma história de amor atravessada pelos ruídos e solidões da cidade.
O NOSSO PAI
Dirigido por Anna Muylaert (Que Horas Ela Volta?, 2015), o curta-metragem O Nosso Pai tem Grace Passô, Camila Márdila e Dandara Pagu interpretando três irmãs que são filhas do mesmo pai e estão morando juntas durante um dos momentos mais complicados da pandemia, em março de 2021. Uma delas perde a mãe para a Covid-19. As relações com outros familiares estão minadas. A escalada de notícias terríveis toma conta dos noticiários. O confinamento impõe sofrimentos, o contexto é de loucura…
“Ninguém faz nada! Ninguém vai fazer nada!”
Assumindo um tom cômico que abraça o improvável e ataca as certezas, o “filminho” de Muylaert manipula os símbolos e os sentimentos experienciados durante a pandemia e o governo Bolsonaro em direção a uma catarse de irmãs que desafia a letargia que vivemos no período e revira nossos remorsos.
Outro filme da diretora, o longa Mãe Só Há Uma, de 2016, também está disponível na plataforma.
NOTÍCIAS
GOYA 2024
Foram revelados no dia 10 de fevereiro os vencedores da 38ª edição do Goya, a principal premiação do cinema espanhol. A Argentina figurou entre os ganhadores representada pelo ator Matías Recalt, que ficou com o Goya de Melhor Ator Revelação por sua interpretação de Roberto Canessa em A Sociedade da Neve.
Já a cineasta venezuelana Claudia Pinto Emperador recebeu o Prêmio Goya de Melhor Documentário por “Mientras Seas Tú, El Aquí y Ahora de Carme Elias”, um filme que Claudia decidiu gravar com sua amiga e atriz veterana Carme Elias, na época recém diagnosticada com Alzheimer.
Na categoria de Melhor Filme Ibero-americano venceu o chileno La Memoria Infinita, de Maite Alberdi (Ler a edição #27).
BERLIM 2024
Aconteceu entre os dias 15 e 25 de fevereiro a edição 2024 do Festival de Cinema de Berlim. Neste ano, a quantidade de obras latinas premiadas chamou atenção. Na competição oficial, por exemplo, o dominicano Nelson Carlos de Los Santos Arias levou o Urso de Prata de Melhor Direção por Pepe, um filme protagonizado por um hipopótamo assassinado na selva da Colômbia que volta em forma de fantasma. Um hipopótamo que pertenceu a Pablo Escobar e que filosofa sobre o pós-colonialismo.
“É muito importante trabalhar com a fábula e o imaginário, mas a fantasia é o gênero mais colonizado que existe! Muitos presumem que, para um país pobre, é impossível contar este tipo de história. Mas a imaginação não é propriedade da Disney”, comentou Arias em entrevista à Variety.
Essa é a primeira vez que um filme dominicano participa da competição oficial de Berlim e também é a primeira vez que um cineasta latino-americano ganha o Urso de Prata de Melhor Direção.
Entre os curtas, o argentino Un Movimiento Extraño, de Francisco Lezama, ficou com o Urso de Ouro de Melhor Curta-metragem. Já o brasileiro Lapso, de Caroline Cavalcanti, recebeu Menção Honrosa do Júri Jovem na Mostra Generation 14Plus. Na mesma mostra, Un Pájaro Voló, de Leinad Pájaro De la Hoz, coproduzido por Colômbia e Cuba, recebeu o Prêmio Especial do Júri Internacional.
Já na Mostra Generation Kplus, o longa Reinas, da peruana Klaudia Reynicke, venceu o Grande Prêmio do Júri Internacional de Melhor Filme. Trata-se de um drama familiar ambientado nos anos 1990 que tem como pano de fundo a ditadura Fujimori. Raíz (Peru/Chile), de Franco García Becerra, e o curta Uli (Colômbia), de Mariana Gil Ríos, receberam Menção Especial do Júri Internacional.
A coprodução brasileira Dormir de Olhos Abertos venceu o prêmio Fipresci da crítica internacional. O longa, filmado no Recife com elenco e equipe internacional, conta com Emilie Lesclaux e Kleber Mendonça Filho entre os produtores e tem sido divulgado como uma “comédia sutil de mal entendidos”.
Também do Brasil, Cidade; Campo rendeu a Juliana Rojas (mesma diretora Sinfonia da Necrópole e As Boas Maneiras) o prêmio de Melhor Direção na Mostra Encounters. Rodado na cidade de São Paulo e na zona rural do Mato Grosso do Sul, o filme fala sobre migração entre o meio urbano e o rural em duas histórias que se complementam com personagens se deslocando em sentidos opostos. Na primeira história, uma trabalhadora rural migra para São Paulo após o rompimento de uma barragem de dejetos de mineração inundar sua cidade natal. Na segunda, uma mulher se muda com sua companheira para a fazenda que herdou do pai, falecido recentemente.
Na Mostra Panorama, o Prêmio do Público de Melhor Filme ficou para Memorias De Un Cuerpo Que Arde, da costarriquenha Antonella Sudasassi (diretora do excelente O Despertar das Formigas, de 2019). Na trama, três mulheres de aproximadamente 70 anos compartilham histórias de como viveram toda uma vida de tabus e repressões de suas sexualidades.
“Esse filme é a conversa que nunca tive com minhas avós. Para mim, entender a história dessas mulheres é entender meu presente, entender meu lugar no mundo, como e por que chegamos aqui”, explicou Sudasassi.
PRIMEIRAS FOTOS DA SÉRIE DE CEM ANOS DE SOLIDÃO
Prevista para estrear ainda este ano, a adaptação original Netflix de Cem Anos de Solidão, romance clássico de Gabriel García Márquez, teve suas primeiras fotos divulgadas.
O que se sabe por enquanto é que a produção contará com 16 episódios de uma hora cada, divididos em duas temporadas. Na direção, a colombiana Laura Mora (Os Reis do Mundo, representante da Colômbia no Oscar 2023 e disponível na Netflix) e o argentino Álex García Lopez (The Witcher).
BIZARROS PEIXES DAS FOSSAS ABISSAIS NOS PRÊMIOS QUIRINO
Bizarros Peixes Das Fossas Abissais, primeiro longa-metragem do diretor Marão, está entre os indicados a Melhor Longa-Metragem de Animação dos Prêmios Quirino, evento espanhol que se dedica a premiar animações ibero-americanas realizadas em longa-metragem, curta-metragem ou produções televisivas.
A obra, única brasileira entre os indicados, narra a história de uma mulher com superpoderes um tanto quanto inusitados que se aventura numa jornada heroica até as profundezas do oceano em busca de uma disputada planta medicinal. Para cumprir sua missão, ela conta com a ajuda de uma tartaruga com transtornos obsessivos-compulsivos e uma nuvem com incontinência pluviométrica.
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